2 de novembro de 2005

Fragmentos de um manuscrito & outros delírios

Fragmento 1. Quando o amor acaba?
Na madrugada, acaba na madrugada.

Fragmento 2. Paradoxal, há uma madrugada em que se pode sentir que olhar para o outro é como se reconhecer em todas as águas sem se ter pisado em outras areias, sem ter visto se as estrelas que o outro via à noite eram também as nossas, fazendo surgir em nossa imaginação lugares secretos e sedutores. Lugares que nos trariam de volta o fluir de uma imagem: encontrar no mesmo olhar os espaços e tempos desconhecidos que um dia nos foram revelados. Um dia isso morre dentro de nós e não sabemos a razão.

Fragmento 3. Coragem. Medo. Guerra. Há alguém sempre de guarda contra seus exércitos interiores? Apreensivo sem saber o que eles estão planejando? A dar-se conta apenas quando uma nova guerra inicia? Sem saber de que lado ficar? Então pensa-se: um deles precisa ir embora, precisa, uma longa e cansativa guerra que nos faz oscilar entre amor-ódio, luz-trevas, saúde-doença, noite-dia, tristeza-alegria, calma-turbulência, areias-ondas, terra-céu, navegar-andar. Talvez, conhecer uma alma guerreira, destruísse o que precisasse ser destruído e salvasse o que precisasse ser salvo. Mas a guerra continua. Exércitos vivem ainda dentro do coração. Defesas ensinadas lutarão ainda entre si? Eu gostaria de saber porque um homem de alma nobre permite que exércitos ainda o habitem. Confiar em sua coragem e em sua fraqueza? Eu gostaria muito de saber.

Fragmento 4. Um quadro de paixão e simplesmente um dia vemos escrito ‘the end’. Deveria haver algo mágico que pudesse manter o amor de duas pessoas por toda uma vida, isto seria maravilhoso. Tão estranho, num dia morreríamos por alguém, no outro não. Como pode tal coisa num sentimento que deveria ser uma exceção? Talvez aí o erro, por pensarmos que é algo especial queremos que tudo que o envolve seja também especial. O lugar mais escuro é sempre debaixo da lâmpada. O algo vivido no presente, no agora de nossa respiração não pode ser vivido em pensamento? então nos perdemos, queremos juntar as duas coisas, mas a luz da lâmpada nos cega.

Fragmento 5. Mas, ainda não. As divagações privadas soam hoje como exércitos a incomodar: a racionalidade como um olhar cínico; o tempo, com o olhar de coisas que já não fazem sentido; o espaço, diz que algumas coisas são quase impossíveis de serem mudadas e que moiras gostam de aí permanecer: no espaço, pois é daí que elas tiram sua força e seu poder sobre nós.

Fragmento 6. Falta algo para deixar a vida mais densa, talvez a guerra vivida longe de nós mesmos. Eu preciso soltar minha 'alma guerreira'. Talvez você também. Eu lembro quando você dizia: 'mas não queria te dizer nada disso, pois é meio filosofia e filosofia me parece meia guerra, um certo medo.' Shakespeare disse que onde crescem os amores crescem os medos. Onde o medo cresce, cresce o amor? A filosofia faz meu amor crescer na mesma proporção que o medo, medo de sucumbir à vida, só o que me dá forças é saber que vou sentir você e toda sua sedução em meus lábios. Sinto falta de suas mãos apertando minha cintura e me levando até onde você está, você me salva do medo, mas não do amor. Shakespeare estava errado.

Fragmento 7. Então, não é mais necessário ‘ter um caos dentro de si para dar luz a uma estrela cintilante’? O caos não é mais importante do que o amor? Ainda não consegui fazer nascer esse caos dentro de meu próprio sentir e se há razão em criar no meu imaginário, uma estrela que me desse o caos, teria que, mais tarde, acabar por libertar dele. Que garantias possuímos? Talvez a encontre em algum lugar do Hades ou nas regiões descritas por Dante na Divina Comédia? Sim, mas quanto do Hades já não pisamos aqui mesmo sem saber que o estamos fazendo? Sim, quem poderia saber? Apenas um limiar entre o limbo e o que não conhecemos, pois há sempre um devir em tudo o que habita em nós, assim, para onde eu poderia voltar a olhar depois de ter visto tal estrela?

Fragmento 8. Não sei o que quero ouvir, se ainda quero. Sei que tenho insônia em demasia. Quisera ter mais, mas tenho que ser normal. Eu me esforço, mas quando minhas forças pedirem ajuda, chegando ao final, quem as substituirá? Eu sim, já me sinto substituída por um algo que me escapa ou talvez seja pelo cansaço que, enfim, o mundo nos impõe com seu aliado, o tempo. Vejo, nos olhos e nas faces, uma desilusão retraída. Em outros tempos se sentiria de outra forma?

Fragmento 9. Disse, há três dias atrás, que só me compreenderia quando o supra-sensível nos proporcionar tudo o que pretensamente queremos saber aqui. Antes, eu deveria desejar que com a morte eu é que viesse a compreender-me. Morto? Mas quem se encontra morto? Um grande choro? Não, ninguém parte somente para entender o que se passou.

Fragmento 10. Por que tudo aquilo que pode nos trazer felicidade antes tem que passar por outros sentimentos contrários? e que, além disso, sem trégua, acabam por destruir os instantes que poderiam ter sido belos? Alternância do mito do sol? Da barca celeste que levava o sol do oriente para o ocidente pelas águas subterrâneas do grande rio Okeanos, fornecendo assim luz e escuridão em uma viagem infinita e circular? Em uma alternância que nos cega e nos vigia, nos embala e anestesia. Quisera eu navegar nesse rio subterrâneo e ser levada pelo seu sopro quente, nenhuma tempestade entre o céu e a terra, caos universal, poderia fornecer tudo que é dado pela imprevisibilidade da delicadeza da imaginação e que a maior parte despreza e tenta viver com a regra do melhor instante: aquele que julgou ser o melhor de toda sua vida impõe o destino para o não-viver e o não-sentir — dos belos instantes.

Fragmento 11. Também o amor, dizem, é levado dentro da barca celeste e sua natureza tão dualista faz com que o caos retorne. A estrela talvez se sufoque com o seu brilho, com sua luz e afogando-se em si, que cintila, volta à escuridão onde o não-ser não sabe de nada, não sofre e não produz nenhum brilho e, portanto, nenhuma dor.
E eu a queimar inteira no lugar da chama que um dia venceu o caos. E o amor onde está?

Fragmento 12. Começo a crer em moiras e não quero vir a me comprometer com a felicidade. Querer que não é querer, sem existir não pode ser. Luto por um olhar ou um adeus dos deuses aprendizes. Salvar? Se for amor, sim. Do contrário, aliados à distância, não seremos capazes de sentir a nossa ausência diante da não-presença um do outro. Talvez facilmente substituída. O mundo é tão cheio. Cheio de vontade. De pessoas. De querer e não querer. Tarde, já tarde.

Fragmento 13. Quando meu pai morrer sua alma ficará comigo ou com o meu irmão? Ou com nenhum dos dois? Se ficará? E por que razão ficaria? Então penso no meu diário. Só tem atrapalhado minha vida, a cada vez que a pessoa que pensei amar o abre. Melhor seria não ter memórias? Quando abro os diários dele penso que sim, suas memórias me entristecem, eu não estava lá e vejo agora somente palavras. Quem dera pudesse ler a verdade dos seus sentimentos e os sonhos que teve e os que não teve. Vejo o aparente, nunca a conhecer o que já foi. Memórias e diários, bom tê-los. Triste também. Então percebo como tudo isso é passageiro e sem importância, mas minha alma acha que memórias e diários têm muita importância mesmo. E eu sofro por ela pensar assim. Que relação há entre meu pai e diários? Memórias, sim, talvez as memórias que ambos carregam consigo.

Fragmento 14. O que é a nossa vida? Conflitos o tempo inteiro. O que poderia ser maior do que isto? Não há filosofia ou literatura que possam ser maiores do que esta experiência, creio eu. Existe algo que não compreendemos e que sempre será maior do que tudo, será sempre o que lembraremos quando, num dia qualquer e sem importância para a continuidade do mundo, viver se resumir a lembrança do que foi feito de nossas vidas. Manhã quente e gélida.

Fragmento 15. Se tenho um desejo ilimitado de ser amada? Não, apenas de ser livre para amar e não estar presa à realidade das coisas. A realidade, sim, tão incômoda, não é o que eu gostaria de viver. Mas o mundo é um só. Não posso transportar-me para outro lugar a não ser para dentro de mim mesma. Também não consigo viver lá fora, não é real para mim, mas a realidade tem suas exigências como o fato de não aceitar conciliar o que dela não nasceu. Onde está minha morada?

Fragmento 16. Ainda procuro pelo devir subterrâneo, pois não quero perguntar porque o tédio se instalou e então a tristeza veio a me absorver, diante de um sábado em que nada muda. Nada muda.

Fragmento 17. Os hinos que me embalaram a estar só provinham de uma única voz, de um mesmo apelo, de um só lugar. Rendia-me a eles ‘every day’ — a eles, só a eles e ao seu balanço de choro contido, como se da esperança sobrasse um sussurro, ainda uma palavra, também dos hinos. Era assim. Então, e nada mais, era assim. Por que estar só é como chover sobre uma cidade em ruínas. Mas não é tudo, quando somente a metade é que se faz estar. Tudo, que é metade. Nada há que terminar. No meio se desiste? Ou depois da primeira vitória, quando se foge covardemente? Hoje, só o que ele faz me preocupa, um quê de algo sempre escondido. Pensamentos a trabalharem sem parar em busca do que se ocultou por detrás de tantos ‘quês’. Se, ao menos, o que ele sente corresse por alguns segundos nas minhas veias, eu teria certeza que sente o que eu gostaria que sentisse, para sempre, ‘everyday’, e eu não precisaria mais render-me aos hinos. Ou a mim.

Fragmento 18. Estou cansada de grandes idéias a serem narradas, quando no mundo, tudo já foi dito. Estou cansada de escrever sempre o mesmo, quando na alma reza-se pelo não dito. Entre o cansaço de tudo isso, carrego no corpo o dito e o escrito, o mal e o bem, e o nada que sempre fito.

Fragmento 19. Digo que o outono nasce, enquanto o verão está a surgir, porque gosto do outono. Minto que nasce, para mim então é isso. Nasce o outono. Nasce a insônia entre o ciclo constante da inconstância que sou. Velhas páginas decoradas já não preenchem meu vazio. Elas mudaram com o tempo? Tudo me é fraco e sem sentido. Tudo serve para alguém. Fernando Pessoa aquece meu frio no verão que chamo de outono. Ele, que descobriu a verdadeira metafísica, tem sua lápide nos claustros do grande mosteiro. Ele, que a tantos dá sentido, rodeou-se da esterilidade do espaço. Respire ao lado de seu túmulo e sentirá o ar insípido. No entanto, rezei a ele, em pé, por um caminho que possa libertar-me ou conduzir-me em definitivo ao caos que quero viver. Expressão de tristeza pessoana? Mas tenho ouvido muitos reclamarem que desde que Pessoa se foi muita coisa passou a sumir da terra e que todos nascem tão iguais que ele faz realmente muita falta. Quisera eu também ser feliz no mundo em que acredito. Saudades de alguém que não conheci.

Fragmento 20. Só pode restar um tipo de consciência: a de que tudo é possível a qualquer momento e seu inverso também é verdadeiro, pois diante da não-possibilidade de acontecer existe a possibilidade de que aconteça, ainda que depositemos aí uma falsa e ilusória angústia. Nascer uma vez mais para a impossibilidade de algo diante das inúmeras possibilidades que o mundo nos abre e que não são exatamente aquelas que queremos vivenciar. A angústia nasce da impotência de que não se pode contrariar o destino que nos cabe. Qual destino?

Fragmento 21. Não pretendo evocar o passado, apenas bater em sua porta amarelada e de pintura envelhecida.

Fragmento 23. Todos os meus desesperos têm uma data marcada: amanhã. Meus sonhos esvaziaram-se. Minha alma também. O que posso esperar de um sossego tão intenso? Sinto dor física no abdômen. É bom saber de onde vem a dor e que ela vai passar, vai passar. A outra, não passa nunca e não sei de onde vem, e assim continuo os meus dias. O dia hoje está parado, parece que as pessoas o esqueceram, o mundo morreu e eu não vi. Os outros viram.

Fragmento 24. Naquela noite, senti a estrela da qual Nietzshe falava pulsar nos meus pensamentos. Percebi que ninguém preencherá a dor do meu vazio. Como algo que um dia sentimos com tanta intensidade pode sumir e por quê? Eu não soube diferenciar angústia do amor que julgava desaparecer? Percebo, não sem a dor, que o caos é apenas um mal-estar a doer no centro do meu peito, na garganta e a alastrar-se como uma peste. Já não o controlo, mas hoje sei o que é capaz de fazer comigo. Não quero aceitar meu imaginário e então é como se eu cometesse um assassinato comigo mesma. Preciso matar isto que vive em mim? Preciso matar uma parte da qual sou feita? Domingo de sol, de chuva e de frio, como eu, domingo de dor e de descobertas. Domingo, hora de deixar-me. Hora difícil não-ser mais eu — e no entanto amo esse imaginário que habita em mim.

Fragmento 25. Preciso de presenças? Já não sei do que preciso. Chorar é bom. Crer também. Como dar de presente à pessoa que se ama um permanente desespero? Eu sei que um dia eu vou mudar e até achar legal a normalidade do mundo, as cores do tapete e o cheiro do amaciante na roupa recém-lavada. Dizem que a angústia costuma nos visitar durante uma estação e depois, demora para voltar. Angústia minha não diferencia as quatro estações, indiferente_ para ela o ano inteiro é primavera. Em qual delas a estrela cintilante é visível na escuridão do céu?

Fragmento 26. Antes eu pensava que se quisesse viver meus sentimentos verdadeiros — todos eles — teria que viver os meus medos e também o desespero. Há o vento lá fora. Outras coisas aqui dentro, onde estou sentada, escrevendo. E há também a consciência de que sou feita de sentimentos dos quais não preciso. As coisas que mais precisamos são completamente silenciosas, delas nada sabemos: inconsciente, imaginário, sonhos. E todos estes silêncios provocam um novo e grande silêncio dentro de mim, sobre o qual também nada sei. Noites escuras silenciam e todos um dia silenciarão.

Fragmento 27. Gostaria de ter mantido a ilusão do amor. Quebrou-se em tão curto espaço de tempo. O encanto disso se foi e tudo recai sobre mim novamente. Outra história me aguardará? Histórias podem salvar. Em sua essência podem ou não quebrar o encanto.

Fragmento 28. Sonhei com as partituras de uma música melancólica como se fosse o Réquiem de Mozart, às vésperas da tristeza certa. Depois, esta música transformou-se em Carmina Burana, a misturar-se com um conto, e novamente as partituras. Perguntou-me o que eu pensava do conto sobre a tristeza que ali estava. Eu disse que, caso tivesse sido eu a escrevê-lo, tentaria explicar as sensações de quando começara a intercalar partituras com palavras. Sim, faltava algo, talvez a verdadeira transição dos sentimentos para as palavras. Das palavras para a música. E da música para as vésperas da tristeza certa.

Fragmento 29. Estou em outro lugar, num lago de águas verdes-acinzentadas e turvas, com sons contínuos e baixos próximos à margem, barulhos que posso escutar. Da margem eu aceno, não sei se quero voltar. Permaneço no lago. Hoje, quando anoiteceu, eu dei um passo. As águas não se mexeram, estão esperando meu próximo movimento. Nas águas, uma verdade e tudo e na margem também.

Fragmento 30. Quanto tempo levarei para chegar até onde quero ir? Será que ainda estará lá o que quero? E se não estiver, o que eu faço? Volto ou não para o meio das águas?

Fragmento 31. Quando estamos tristes nossas raízes nos traem? Vem à tona o queremos dissimular? Mas onde estão minhas raízes se ainda moro na mesma casa? Se tudo em mim fosse dissimulação, como eu ousaria falar em raízes?

Fragmento 32. Saber se identificar num mar de nomes? Mas como fazer isso quando é a chuva que tomba do céu? caindo no mar turbulento que nos foi dado, como então se identificar num abismo que tomba há séculos enquanto a Noite nos nega a estação que dura o ano inteiro?

Fragmento 33. Inverter prioridades tidas como absolutas e deixar pré-conceitos para um outro dia. Será que pode dar certo? Coloca em risco a estrutura de vida que se estabeleceu? Troca-se os pré-conceitos pelos pré-receios?

Fragmento 34. O Bem, sentimento? Preocupei-me vários dias em como o poderia viver. Preocupei-me demais. Padronizei a forma de pensar e agir. Sem quebrar o estabelecido foi chato, sem graça, morri por alguns dias. Prefiro o Bem de outras formas.

Fragmento 35. Adoro esquemas sacros. Não consigo entendê-los. Nos dão uma garantia de nossos loucos atos de ceticismo, silenciosamente. As belas estátuas que nos miram sem pedir decifração. E nós?

Fragmento 36. Crises, sim, de todos os tipos, já as tive, afetivas, existenciais, e, então, a Filosofia. Sinto-me tão incomodada há tanto tempo, e há muitos meses sem re-ação, o que me leva a crer que crises não são temporárias. A re-ação, apenas uma síntese sobre o que está a incomodar, somente isto.

Fragmento 37. Hoje vi, pela primeira vez, o portão aberto. Sair ou não sair? Permaneci. Se o portão inventasse de fechar, com uma brisa ou uma tempestade, eu sairia rápido. Estou observando. Penso que há algo mais.

Fragmento 38. Antigos manuscritos para novos sentimentos? Sei que durmo. Nessa noite, repouso em meu leito. Toca o telefone e não respondo. Durmo em meu quarto. A dor da perda transforma, sabemos. Longe, pergunto se estará com dor. Não tenho como saber. Como se viajasse sem dar notícias. Existe dor maior? Da incerteza de uma dor que não a nossa?

Fragmento 39. Possuímos formas diferentes de dar atenção. E eu, que escrevo isso, não compreendo o que seja isso. É possível produzir muita coisa sem entender nenhuma delas. Dividir com quem?

Fragmento 40. Deus, à diferença do homem, não tem necessidade de amigos, a causa disso é que para nós o bem vem de algo que não somos nós, mas Ele é para si mesmo o seu bem. Sinto-me deus ou o mal habita em mim. Nunca me sinto satisfeita com o bem que conquisto, sempre quero outro e mais outro. O conceito não está certo. Perdi-o no caminho.

Fragmento 41. Quando o trato bem, comove-se. Não está preparado? Deveria ser o contrário. Eu o assusto quando sou normal? Dura pouco.

Fragmento 42. País estranho
este que habitamos exclusivamente com outra pessoa. As coisas criam uma dimensão mais definida e maior, bem maior do que antes. Lá fora tudo parece bem calmo.

Fragmento 43. A minha preciosa independência emocional. Criei laços de afetividade fortes com ele. E agora sofro com intensidade, não sei o que fazer com isto. Independência emocional. E o que é ser dependente de alguém? Ver os pensamentos, assim, no papel, congela, nos torna mais cruéis do podemos ser, a dimensão do sentido passou por mais uma das sensações: nosso olhar sobre as palavras. Mas não preciso explicar nada aos meus olhos, graças a Deus. Bom quando não se precisa explicar nada. Explicações complicam, implica o que você pensou, o que disse, na forma que disse, o que foi interpretado, em que sentido, como, por quê. Distante, muito distante. Explicações não tem sentido de ser. Vagas, muito vagas, erro de percurso, esquecer, melhor assim, não ver, não esperar e desenvolver-se, contrário a envolver-se. Melhor calar.

Fragmento 44. Escolho racionalmente a quem dedicar minha afetividade? Se assim o faço, não sou afetiva pura e simplesmente e, sim, racional e levemente interessada em algum tipo indefinido de algo a que deram o nome de afetividade. Ser afetivo com quem: ou o ser-afetivo faz parte do nosso ser ou não o faz. Mas, o que se pode fazer com a afetividade que não se quer sentir? Sublimá-la?

Fragmento 45. Há os que pensam que existe glamour na depressão. São aqueles que vêem este mundo particular do lado de fora_ só observam e nada mais.

Fragmento 46. Hoje a realidade pareceu-me interessante, bela. Mais do que isso, prestei atenção às pessoas. Ainda não observo o que vestem, seus calçados, saias ou gravatas, mas já ouço suas vozes reais e as palavras me soam diferente e estão distante de mim e do papel. Nenhum sentimento triste me incomoda hoje. Nada interfere no que sou, sinto-me entorpecida ou anestesiada, não saberia dizer. Morri?

Fragmento 47. Acordei pensando sobre o fato do inconsciente existir mesmo ou não. Ser apenas ficção, afinal, o ponto de partida de Freud. Terei perdido tanto tempo em compreender-me, em ler meu inconsciente, que é provável que eu ficasse triste. Algo como ser traída pela humanidade que inventou de fazer ficção dentro de mim, dentro de cada um de nós, nos induzindo a uma concepção de alma falseadora de tudo o que somos. E nada mais resta no mundo senão a ficção dos livros e do inconsciente?

Fragmento 48. Maldito inconsciente, se existe, guarda tudo sobre nós sem trégua. E guarda para um esquecimento que se faz lembrar sutilmente. Fizesse algum ruído seria mais fácil. Nenhuma pista. Nada. Quanta elegância. Faz metáforas o tempo todo. Tenho mais o que fazer.

Fragmento 49. Tenho medo. Medo do meu sentir. Das poucas reações das quais sou capaz. Não sei de nada. Só sei da minha instabilidade de sentimentos. Como posso exigir de mim sentir a mesma coisa daqui a duas horas que sejam? E o que é sentir a mesma coisa? É possível?

Fragmento 50. Quando conheci o mundo real, fazia muito frio, pingos fortes caíam do céu sem parar. Nasci num dia assim. Sou o dia em que nasci.

Fragmento 51. Os sonhos? Bem, os sonhos são a desordem dos pensamentos enquanto descansamos. Nada mais do que brincadeiras do repouso. Uns brincam demais, outros nada.

Fragmento 52. Por que Deus nos deixa viver tanto tempo com tantas incertezas? Ou ele não existe ou ele sonha como nós.

Fragmento 53. As palavras, o que são exatamente as palavras? Aquilo que um dia vi, mais as sensações de quando vi ou de quando estive a lembrar? E, dessa maneira, passo as sensações que são minhas para as palavras. Ainda assim, pergunto-me o que são elas, além de confirmarem o que senti e o que não senti.

Fragmento 54. Meu sentir é algo só meu. Ninguém poderá senti-lo. Talvez algum dia, não sei. Por enquanto me pertence. Algum dia, expressão de esperança e momentâneo desalento, algum dia, quem sabe, as coisas possam ser diferentes.

Fragmento 55. Diz o existencialismo que a existência precede a essência. O homem será antes de mais nada o que tiver projetado ser. Ou seja, como não há determinismo na essência e esta se faz durante a existência, o homem tem condições de fazer sua história, de mudar o curso do destino. Mas eu não sei se as mudanças que ocorreram na minha vida partiram de minha essência ou de minha existência que se fez essência naquele dado momento em que algo mudou. Como saber a linha que demarca o que é e o que não é? O que foi feito e o que não foi?

Fragmento 56. Reclamou do meu estado linear. Antes, eu alternava o humor de minuto a minuto, agora não. Preciso me acostumar com tanta linearidade e boa paz. Eu mesma me sinto entediada com minha linearidade. Não suporto pessoas assim, tão estáveis emocionalmente, previsíveis, sem graça. E estou ficando igual, sem vida. Não há coisa pior do que pessoas lineares.

Fragmento 57. Pode a depressão virar um tédio total? Na verdade, dois infernos: o tédio natural não tem cura; a depressão também não, mas pode ser tratada. O segundo grupo pode ser mais interessante, pode-se eventualmente experimentar o tédio quando nos sentimos vencidos pela angústia. O tédio, afinal, é como um sono longo e cheio de torpor. Estou torporizada.

Fragmento 58. Adoro a chuva, as trovoadas, o escuro que se faz, o vento frio que balança as árvores. Todos se recolhem e o mundo então pertence à chuva. As pessoas se escondem, fecham-se em suas casas e em si mesmas. A chuva se apodera de tudo. Se dilue para depois sumir completamente. E o resto?

Fragmento 59. Ele era freudiano, não acreditava na imortalidade da alma, apenas no eterno retorno dos sonhos. Parece que só eu me desespero com o fato de que as pessoas que mais amo não existirão um dia. Vivem como se fossem imortais e isso não interfere em suas vidas, na minha sim. Na infância já era assim, só que eu não sabia que as coisas vividas na infância reforçam-se com o passar do tempo. Penso que agora é tarde.

Fragmento 60. Pensei em chorar. É, deu tempo para pensar em chorar. No entanto, senti que as lágrimas cairiam no fino tecido da minha blusa e secariam em seguida. O que restaria dessa noite? Uma vaga memória perdida no tempo. Existem formas diferentes de dizer a si próprio que algo está sendo produzido em demasia dentro da alma, não como lágrimas que evaporam em finos tecidos, pois o chorar em si não contém diferenças. Não se tem como criar uma lágrima que ao cair vire uma mancha artística. Impossível transformá-la em obra de arte e, no entanto, concedida não é mais do que poderia ser.

Fragmento 61. Não queria dar tanta importância às palavras, tinha receio que não sobrasse nem ao menos um roçar delicado e infantil para o silêncio. O silêncio existe e é tão solto, a ser feito de areia entre os dedos ou de lágrimas contidas. Quando não-contidas levam um pouco da dor para longe do corpo. A ilusão se desmancha quando tudo retorna a uma razão para se fazerem vistas. Eu não olho para elas. Corpo estranho que se move. Silenciosas e lentas. Muito lentas, a crescerem e a se reproduzirem muito, muito lentamente.

Fragmento 62. Impressionante como os momentos de lucidez são dolorosos. Hoje senti minha voz quase num sussurro e movimentos ausentes. Era a lucidez e agora não sei o que fazer. Não é terrível não saber o que fazer? Pois eu não sei o que fazer, espero que seja temporário como lágrimas e coisas assim.

Fragmento 63. Reclamo da falta de liberdade. Virei escrava de meu próprio pensamento. Penso nas imagens, nas palavras, não sobra mais espaço. Gostaria de pensar quando eu quisesse, mas não, o quando quisesse ocupa o tempo todo. É dessa pequena liberdade da qual falo. Está dentro de mim e não tem nada a ver com a vida exterior. Tudo dentro de nós, nada além, o exterior se forma e se distorce.

Fragmento 64. A vida lá fora é uma escultura moldada constantemente pelos nossos olhos e pelas nossas sensações. Escultura onde cabem todas as formas e cores, feita de tempo e de ausência.

Fragmento 65. Estou mais afetiva com o mundo. Mas, na maioria das vezes, só consigo enxergar meu próprio pensar. Às vezes, recordo a personagem da Hora da estrela, de CL, ‘incompetente para a vida’. Aliás, Fernando Pessoa já tinha dito isso. Todos dizem coisas já ditas alguma vez em algum lugar, porém com alguma diferenciação, o que torna, sem dúvida, tudo levemente novo e genial. Não em sua essência, é claro, mas as idéias são sempre as mesmas. Fico pensando na Macabéa, onde e como um ser humano, ‘incompetente para a vida’, poderia vir a se tornar competente para outra coisa? Para ‘isso’. E o que é ‘isso’? Isso é o isso que o Freud transformou em id e depois em inconsciente. De novo ele, o inconsciente.

Fragmento 66. Li, em Samuel Rawet, sobre as pessoas paranóicas. Elas completam atitudes, frases, gestos e olhares de outras pessoa, dentro de suas mentes. Passamos a vida inteira achando isso, pensando aquilo, que todos afinal são um pouco paranóicos. Qual o limite de ser saudável e de se estar pisando no primeiro degrau da paranóia? Difícil dizer, melhor classificar o ser humano como sendo paranóico e pronto.

Fragmento 67. Penso em dormir e em sonho voltar para um lugar perdido nas minhas memórias, mas os temores me invadem. Como seria bom não pensar em dormir, não sonhar, não voltar.

Fragmento 68. Tudo o que eu quis dizer foi o seguinte: a euforia não foi em direção ao vazio. Assusta sentir estabilidade interior pela primeira vez, pergunto-me se será para sempre. O para sempre existe? A vida é muito estranha. Não sei se é ela ou se somos nós a conspirar contra nós mesmos, a aproveitar qualquer frase mal elaborada para por tudo a perder. Ainda assim, vejo que não me bastaria somente o que eu poderia ver, duraria pouco. Seria frágil. Apenas uma tentativa de alcançar algo que, de certa forma, ele não teria dentro de si. Impossível. Eu estaria enganada.

Fragmento 69. Caminho de sempre. Passos nem receosos, nem deixando de sê-lo. Nada tinha para dizer-me, além de observar o suor que grudava nas roupas do meu corpo, jogando minha alma doentia para longe, como se o horizonte existisse longe disso. Mas do que pode ser feito um horizonte que não se enxerga? O que faz um cigano quando é deposto? Será que ele deixaria que eu molhasse os meus pés na madeira úmida e salgada? Precisaria ancorar a mim mesma até que resolvesse partir em busca de passos não-receosos. Será preciso ir tão longe de você mesmo para enfrentar uma odisséia? Não somos nós mesmos a nossa própria? Tão grande em nossa montanha particular e quase inacessível aos outros? Mas eis que já tocava a minha, suavemente, enquanto ainda nenhuma montanha esperava Zaratustra.

Fragmento 70. Não é durante à noite que as cidades e os reinos sucumbem? Será que é à noite, também, que os sentimentos refluem sobre si mesmos temperando tudo num só corpo de mesmo corpo?

Fragmento 71. Como são os horizontes que nunca viu? Conseguirá ainda viver em você mesmo sem pensar neles? O que faz um homem de ‘alma guerreira’ quando deixa de sê-lo? Você vai deixar que eu molhe meus pés na maderia molhada pelo mar que abrigou o barco que o trará de volta para mim? Estou cansada de ancorar a mim mesma num lugar, que eu sei, sem porto. Quando você retorna?

Fragmento 72. Noite de des-tecer a tela que fiz durante o dia. Não é durante à noite que devemos vigiar quem somos?

Fragmento 73. Angustia-me o universal que também serei, que um dia não mais se olhará no espelho. Sim, chega, chega dessa estampa falsa, então direi. Melhor olhar para si, sem ver-se concretamente, carregar a alma com seus vícios e distribuí-los para que a consciência do que acumulamos não nos engane. Quero todos eles estampados a minha frente, gritando que são meus. Vícios meus e tudo o mais que empurrei para dentro de mim sem saber ao certo que aumentariam o que não quis ser. Meu coração sente. Eu sinto.

Fragmento 74. Estou escrevendo deitada entre cobertores e travesseiros pesados. Não há nada feito de suaves penas de ganso por aqui. Também nenhum que eu tivesse usado na infância. Envelheceram mais rápido do que eu ou minha avó. O quarto era dela. Envelheceu e morreu. Não parece que dormia aqui. Cigarro no bidê ao lado, permito-me fumar no quarto. Ela gostava de cantar no escuro. Eu não canto. Gosto de luz artificial. Gosto do quarto. Apago o cigarro, a luz não.

Fragmento 75. A única certeza é essa dor de que algo se perdeu. Sei que não voltará. Como faz tempo. O tempo da infância parece uma outra vida, de outra pessoa, olhamos para trás e sentimos não ter sobrado muito. Negamos nossa ingenuidade diante do mundo, e isto é bom. Então, negamos a infância e a falta de clareza que a ingenuidade nos obriga a viver. Na infância somos seres livres, apesar da ingenuidade?

Fragmento 76. As dores mais profundas são as universais, aquelas que todos poderão sentir. Quem irá amenizar a dor? Ninguém, pois por ser universal é que é assim. Independente de tempo, de Anaïs Nin ou de qualquer coisa classificada como loucura. Eu aqui. Ele lá, distante. Também universal. Porém, sem dor.

Fragmento 77. Descubro hoje que o único espaço que era dele converteu-se no sofá estampado da sala, mais o monitor do vídeo da televisão. Um sonho se mistura a isto, duas pessoas dormem num quarto, outras duas limpam a casa, é madrugada, amanhecerá e o sonho terá sido sonhado. Termino de ler Henry, June e eu, da Anaïs Nin e descubro também que tudo foi menor do que pensei ter vivido. Percebo, com aquela tristeza que torna tudo reducionista, que a realidade foi normal e que a loucura, imaginária. Tudo que vivi foi mais intenso dentro da minha mente do que para o mundo de outros que continuaram a circular, sem exigir exageros do seu próprio imaginário. E esta tristeza reducionista, talvez todas sejam, diz ao meu tempo interno que duas pessoas, ou mais, ainda dormem no quarto ao lado e que é madrugada, que será ainda por um longo tempo.

Fragmento 78. A imaginação não é um estado, é a própria existência humana, William Blake. Não possuo um estado imaginário, já que não estou num estado de imaginação. Seria preciso estar dentro-de, para que fosse possível nos constituirmos de qualquer estado que seja. Não estou dentro de minha própria imaginação, senão que sou a própria imaginação, pois a condição de existência humana é que me afoga na ação imaginária, aliás, a única ação que conheço verdadeiramente.

Fragmento 79. Já morei em diversas cidades. Sempre volto para visitar meus pais. Cidade pequena, pessoas vivendo devagar. Não é campo, mas é como se fosse. E como é triste quando o sol se põe, tem-se a impressão que o tempo esquece que existe. O tempo deixa de existir em lugares assim, deprime. Tempo parado, assemelha-se à morte, sem movimento. Quando o sol se põe, faz a morte existir. E as pessoas continuam a respirar pausadamente, não importando que assim seja. Mas eu me importo. Venho de fora. Sinto-me deprimida. Prefiro a correria da cidade grande. Bastante movimento, vida, muita vida. Será mesmo isso, vida, que pensamos sentir com as luzes e os movimentos de um lugar que nunca dorme?

Fragmento 80. Ser menos exigente para se demonstrar mais o amor que se possui. Trata-se de exigência que se carrega, espontânea. A espontaneidade tem muito valor, foge a neuroses e ao controle de nossas atitudes tão bem construídas, também foge às defesas do nosso inconsciente revelando como se manifesta no seu exterior do interior a que foi confinado e a que nos confina. Como ele não deve aparecer, logo nos recuperamos dessa doença — a espontaneidade — e ignorando-a esperamos que não cause mais problemas existenciais. Fora com isto, viva o autocontrole e o inconsciente.

Fragmento 81. As coisas que vemos nada podem fazer por nós. Instantes elevados de admiração. E depois, voltamos a nós.

Fragmento 82. O espírito livre é aquele que não está a amar ou apaixonado. Do contrário, não livre, sartreanamente que seja, apega-se a pequenas coisas. Ouvi alguém dizer que o mundo seria manso se não houvesse o amor. Talvez manso demais.

Fragmento 83. Como é um ser humano que não ama as palavras ou a metafísica? O que amamos realmente?

Fragmento 84. Não agüento me sentir vazia. Pego um livro. Sinto-me só. Os personagens não sabem que eu existo e que estou a ver-lhes a vida e os sentimentos. Sinto-me uma intrusa. Continuo a ler e a conhecê-las a cada linha um pouco mais. Elas continuam sem saber que estou aqui. Termino o livro, elas se foram, não pude dizer nem ao menos quem sou, o que pensei sobre elas. Nunca saberão que estive entre suas vidas, se chorei, se não chorei. De que adiantaria? Estão confinados às palavras.

Fragmento 85. Se escrevo? Sim. Invento rostos que não existem, olhos que em verdade nada vêem. Vidas com sentimentos e sem sentimentos, que não são vidas. As personagens nada sabem do que sentem. Eu crio suas almas pela metade e para momentos. Elas aceitam, choram, amam e morrem pairando no ar sem terem existido, só com palavras. Mas eu não sou só palavras. Invento seres que são só isso. Palavras.

Fragmento 86. E talvez alguém crie nossa existência através de um belo texto. E, como nossas personagens, vivendo as palavras e a idéia pré-concebida, vamos nos transformando em algo mais do que o texto, do que as simples palavras. Será que alguém está lendo minha história em voz alta enquanto estou a viver? Engraçado, não faz pausa para um café ou uma cigarrilha de cor sépia. No meu texto, não há pontuação, fluxo de consciência ininterrupto.

Fragmento 87. Hoje sinto a leveza da angústia como se tivesse morrido e, no entanto, continuasse a viver. A paz traz consigo a beleza de algo eterno. Sinto-me viva com um sentimento que se assemelha à morte. Quem sabe é o Vivaldi que toca ao lado? Quem sabe é ele que dorme no quarto? Quem sabe sou eu sentindo que o eu não sou? A paz é para ser deixada em paz e para nada se fazer com ela; Vivaldi para ser escutado, ele, para ser amado. Sim, eu sei e ele dorme.

Fragmento 88. Tudo parece invertido, finjo que não, mais fácil brincar de certezas e cegar os olhos. Difícil convencer a vida a olhar para onde quero. Tenho tanto medo da ausência da metafísica. Eu sei, não serve para nada, não é pragmática, mas o desespero de ensaiar este sentimento é suficiente para que eu me angustie diante da possibilidade. Crer na metafísica é crer na incerteza do que não vemos. O mundo me cega diante de tanta claridade e eu me apoio na desculpa de todos, estou diante do sol e tudo me basta para viver.

Fragmento 89. Nenhum sentimento meu resistiu tanto a se deixar destruir por problemas imaginários. Significa algo? Sim, do contrário, seria fácil abreviar algumas situações. Mas este não é o caminho, talvez os budistas estejam certos, o caminho é o do meio, aquele que relutamos em tomar por ser o mais estranho e desconhecido. Evitamos o que não conhecemos, porque nos acostumamos a pensar que junto com o desconhecido existe a dor lado a lado. Nunca escolhemos este caminho e quem sabe quem o escolhe é que consegue ser feliz.

Fragmento 90. Quando estamos a minar o nosso pensamento? Quando não estamos a nos comportar como mandam os manuais? Não podemos permitir que preponderem sobre todo o resto. Nosso comportamento, sim, o comportamento.

Fragmento 91. Eu lia Fernando Pessoa e Goethe, pois eles faziam com que eu sentisse um certo conforto existencial. Eles sentiram o mundo - as dores do nosso mundo - com tanta intensidade que a minha dor não era quase nada. Eu podia, então, sentir uma proximidade com a minha própria dor. Uma proximidade que só a filosofia e a literatura podem infiltrar dentro de nós. Agradeço por terem existido.

Fragmento 92. A verdade é o que importa, mesmo que transitória, afinal todas são, não há como viver sem elas. Peço desculpas pelas idéias sem lógica, fluxo de consciência às vezes funciona melhor. Alguns meses atrás dei-me o direito de desencadear uma dor a mais. Agora, quero salvar-me de dores a mais.

Fragmento 93. Quando não conseguimos viver com segredos, também não conseguimos compreender como alguém consegue viver com eles. Eu não sei viver com segredos. Quando, na despedida, ouvi: ‘o ar não se enxerga, se você quisesse ver o ar, não iria dar um jeito de ver este ar?’ E eu respondi: sim, se eu quisesse saber da existência do ar tentaria vê-lo de um jeito ou de outro. Mas supondo que depois de procurá-lo, passasse pelos meus pensamentos que este ar pudesse transformar-se em fogo, talvez eu desistisse, não ia querer me queimar. Shakespeare talvez tenha razão, ‘a consciência torna a todos covardes’.

Fragmento 94. Às vezes, eu tinha a sensação de que possuía uma alma tão distante de si próprio que quando eu olhava de uma forma mais demorada ficava me perguntando: onde está aquele para quem a pouco eu estava a olhar? Não sei bem o que vejo agora, nem o de antes que pensei ver, nem o de agora, pois não sei mais quem é este que se mostra. Então, eu fechava os meus olhos e preferia pensar que a loucura era uma espécie de perda total dos nossos exércitos interiores. E, por isso, nossa alma fica distante até mesmo de nós.

Fragmento 95. Um labirinto tem vários caminhos, várias portas e uma só saída, todos sabemos disso. Mas encontrei um labirinto com um só caminho, porém com várias saídas. Só alguém que nos emociona e toca consegue abrir uma porta dentro do nosso ser impulsionada às vezes por coisas simples, muito simples, e aí posso novamente me sentir como a Alice no País das Maravilhas.

Fragmento 96. Sinto que estou indo embora de mim mesma, embora eu ocupe o mesmo lugar, mesmo corpo, mesmos pensamentos. Estou indo embora, não sei para onde vai esta que eu julguei por tanto tempo ser a verdadeira. A Alice do País das Maravilhas deve partir. Mas esta outra que chega, tenho medo de quem possa ser.

Fragmento 97. Na última vez em que estivemos juntos, recitei um antigo ditado indiano, que diz: depois de se subir no tigre, não se pode saltar. Se se quiser enxergar mais alto e mais longe, ver o que há por trás de tudo que existe, pois a vida não pode ser só isso, só o que vemos, não se pode saltar do tigre, seja ele o que for. Foi a minha última frase e foi neste instante, neste recitar bobo e sem sentido que algo se perdeu dentro de mim. Como alguém, somente com palavras, pode exercer tamanha força em tudo o que somos? Tempo de frases fortes, senti a terrível certeza de que eu já não era mais a Alice. Não eram nada aquelas páginas idiotas, pois que eram lirismo e romantismo puro, que hoje nada são.

Fragmento 98. Percebi que o que fizera até então, não representava nada, nem ao menos para mim. Tempo desperdiçado. Fugi de mim mesma. Como sentir algo que nunca esteve dentro de nós? Sou escrava de meus pensamentos e outras coisas que eu não sei que habitam em mim. Limites. Forças ocultas. Bastidores. Metafísica.

Fragmento 99. Prometeu que viria conversar em sonhos, mas tem aparecido muito pouco. Algumas poucas frases e se vai. O que eu senti o tempo todo em que estivemos juntos? Eu não sei, não tem importância, não preciso definir. Um tremor de mãos, um pouco de suor, um rei de espadas que para muitos não faz sentido, o ermitão. Olhar nos olhos sedutores e não ver senão o escuro?

Fragmento 100. Depois que você saiu eu quis sair de mim mesma, eu estava completamente adormecida, embora embriagada. Precisava convencer-me de que tudo era brincadeira. Por que a alma perde a sua consciência pessoal? Por que é sempre uma outra pessoa que nos leva a perdê-la? Por que nos perdemos quando o coração bate? E por que o coração não pulsa pelas pessoas certas? De que adianta momentos de alegria quando atiramos para o alto o que temos de mais sagrado? Só por pensarmos que alguns momentos de alegria podem nos deixar uma reserva de ‘vida’ por alguns dias a mais? Não deveríamos ser imunes às dores, após termos passado por elas?

Fragmento 101. Ser único no mundo é um peso, é a condenação de Sísifo, só você para saber como sente, porque sente e de nada adiantam palavras se nunca, nunca, por mais belas palavras que possamos usar, ninguém jamais conseguirá ter uma idéia de como algo foi sentido. Por isso, não adianta procurar alguém que seja uma espécie de alma gêmea, nem assim. O universo brinca conosco. A normalidade não faz sentido, torna as pessoas cegas a verdades que não existem e que não fariam nenhuma diferença para o universo se não existissem, também um futuro que nunca terão. Se, pelo menos, a metade do mundo fosse de filósofos, o tempo demoraria mais a passar.

Fragmento 102. Como se livrar da moira que habita nossa casa imaginária? Pensei que já tivesse vivido todas as dores. Sim, eu fiz questão de ir atrás e de viver o que existe no mundo. As moiras que não vivi na realidade, antecipei em meu imaginário com uma dimensão tão grande que, caso precisasse vivê-las, seriam menores, e a abertura que eu poderia dar a tudo isso nos meus pensamentos não haveria de provocar uma punhalada a mais em meu nobre e delicado coração.

Fragmento 103. Confesso, nunca sonhei com coisas que pertencessem à realidade. Eu sempre soube, meus sonhos só caberiam dentro de mim mesma. Agora, tornei-me um pouco mais distante. Mais alguns invernos e terei completado quase todo o caminho de uma distância que não quis percorrer. O eterno retorno que não escolhi.

Fragmento 104.Não importa que o coração dele venha a secar como uma árvore de outono, pois quem está preocupada com isto sou eu, não ele. Como saber se um beijo é de despedida ou de ‘em breve nos veremos’? Volto para meu porto seguro, todos temos um em segredo. É possivel salvar algum momento? Quem sabe no futuro alguém precise voltar seus olhos para este momento. Sim, melhor salvá-lo. Existe uma primeira vez, uma segunda e uma terceira, então, dizem, transforma-se em amor. Se assim fosse, eu teria amado? Talvez eu esteja virando uma traficante de minhas próprias idéias. Não sei.

Fragmento 105. O que realmente amo nas pessoas são as idéias que têm ou que possam vir a ter. Tem certas coisas na vida que são quase impossíveis de serem mudadas, sabemos disso. Então é um consolo pensar que algumas pessoas passam pela nossa vida para que nos mostrem um algo a mais que antes não havíamos percebido, as pessoas não surgem sem uma razão que nunca compreendemos qual é, mas vão embora com razões inúmeras e sempre, sempre, sabemos porque nada fizemos para impedi-las de ir. Sim, agora já posso afirmar: ‘é preciso ter um caos dentro de si para dar luz a uma estrela cintilante.’

Fragmento 106. Então quando acaba o amor? Quando eros deixa de habitar o que chamamos de nossos sentimentos? O que fica no lugar? Permanece o eros que se contrapõe a tanatos e vai embora aquele que é uma espécie de eros-transitório, eros-andarilho, eros-ficção, eros-efêmera-invenção, para que o verdadeiro eros não sucumba a tanatos. O feitiço contra o feiticeiro, o amor acaba pelo instinto dele próprio, eros nos dá e nos tira o amor, do contrário tanatos nos destruiria. Nos dá o caos e a estrela cintilante, mais tarde, transbordante, nos joga de volta para a realidade tediosa de sentimentos banais e previsíveis, com os quais podemos viver tranquilamente. Podemos então esquecer que amamos esta e aquela pessoa e darmos uma trégua à guerra dos dois exércitos: talvez atenas contra esparta.

Fragmento Final. É assim que o amor acaba.
Eterno retorno sobre si mesmo.
Mas ainda insisto: sempre na madrugada.
Anna K. & Antigos Escritos de 1997