31 de agosto de 2005

Sapatos de madeira

Não havia sentido em reproduzir, à noite, as ações vividas durante o dia ou descrever o que vira. As ações eram meras 'ações". Não, melhor olhar para os sonhos.

Propriamente uma imagem do passado? Pessoas velhas têm essa imagem, de passagem de um tempo já bem distante. Usava calçados de madeira, tipo cerejeira. Velhos não gostam de cerejas ou de cerejeiras. Nem de coisas de madeira. O sapato fazia barulho de madeira contra madeira. Pedi que ficasse quieta. Parasse de caminhar e fazer aquele som insuportável, passos pequenos e vacilantes do corpo carregando madeira nos pés tão magros e enrugados. Foi para a cozinha. Agora o calçado dela fazia barulho de madeira contra a cerâmica. Estava a fim de irritar-me. Pedi então que tirasse o sapato ou trocasse por outro que não fosse de madeira. Não ouviu. Mandei que calasse a boca. Não ouviu. Continuou cantando uma música italiana que não consegui compreender. Cantava como se fosse uma ópera chorosa que na verdade não era ópera, mas era chorosa. Cala a boca. Não adiantou. E o sapato a bater de lá para cá. Ora contra a madeira, ora contra a cerâmica. Mandei que fosse dormir. Andou pela casa, apagou todas as luzes e continuou a cantar. Pedi mais uma vez que tirasse o sapato de madeira, parasse de cantar e acendesse as luzes. Tentei sair e percebi que a porta estava sem chave. Ela brincava com as chaves entre os dedos enquanto cantava sem olhar para mim. Olhos que não faziam mais parte deste mundo. Ela não fazia mais parte do mundo. O que fazia no meu sonho? Pedi as chaves. Precisava sair antes que ela me enlouquecesse. Era como se não pudesse tocá-la. Peguei-a pelos ombros e sacudi-a. Toquei-a. Continuou impassível. Joguei-a entre o fogão e a pia da cozinha. Então ela ficou quieta. Parara de cantar, de bater os tamancos de madeira. As chaves caíram no chão.
A crueldade dos sonhos