19 de setembro de 2005

Sacro-profano

Nove horas da manhã. Dia dos finados. Fim de ano. Dia de lembrar dos que partiram sabe Deus para que lugar. Dona Paola, conhecida como tia dos gatos, iniciava a reza para seu falecido esposo, João Victório. Em pé, ao lado do túmulo, não sentiu saudades. Ave-Maria cheia de graça o Senhor é convosco, tinha muito o que fazer, só pensava nos gatos, em sua alimentação, no cuidado que deveria ter para com sua herança, e bem dita sois vós, não havia dado comida aos gatos ainda, Santa Maria, Mãe de Deus, precisava dar um banho, estavam bem sujos, rogai por nós os pecadores, agora e na hora de nossa morte, amém.
Nove horas e sete minutos. Chega Dona Hilda, segunda esposa de João Victório, herdeira de inúmeras revistas, as mais diversas possíveis, que ele insistira em guardar enquanto moravam juntos. Mania estranha. Fazia, contudo, seu João muito feliz. Deu bom dia à Paola e passou a rezar, sem esquecer do problema que a envolvia constantemente, Pai nosso que estais no céu, precisava separar as revistas por ordem de aparecimento, santificado seja o vosso nome, estava difícil de descobrir quando João Vitório as havia trazido para casa, seja feita a vossa vontade assim na terra como no céu, muito desordeiro, agora estava se quebrando para colocá-las em ordem cronológica. Talvez devesse pedir ajuda a sua amiga Rosa, que era arquivista, para catalogá-las devidamente, e não nos deixeis cair em tentação, já ia esquecendo, trouxera uma revista bem novinha, depositou-a com toda a cerimônia na lápide de João Victório. Continuou rezando. Era bom rezar.
Nove horas e onze minutos, a terceira e última esposa do falecido, herdeira do automóvel e dos conhecimentos de mecânica de João Victório não deu nem bom dia. Rezou, Santo Anjo do Senhor meu zeloso guardador, e o óleo a ser trocado, se a ti me confiou a piedade divina, velas que estavam sujas, sempre me rege, me guarde, carburador entupido e freio problemático, desde a época em que João dirigia o corcel, ano setenta e nove se não estava enganada, me ilumine, amém. Talvez devesse vender a sua herança. Só lhe dava problemas. Perdeu-se no meio da reza. Melhor rezar um Pai-nosso.
Dez e quarenta e cinco, as três senhoras, em completo silêncio, continuam rezando. Uma velhinha que passava por ali emocionou-se, três mulheres idosas, postadas de forma distinta ao redor da mesma lápide? Que lindo — pensou ela, com os olhos já transbordando de lágrimas — completa devoção àquele morto.