26 de setembro de 2005

Deus já ia longe, quase dobrava a esquina



A porta era logo ali, não seria difícil alcançá-la em alguns segundos. Tempo suficiente para que ele tentasse detê-la. Quisesse pegasse um táxi, dissera a voz arrastada. Anna compreendeu que segundos ou horas não fariam mais diferença. Sim. Pegaria qualquer coisa para ir embora, atravessaria a cidade a pé, se necessário. Madrugada, não estava frio, alguns chuviscos molhavam superficialmente o cabelo e a roupa, davam a impressão de umidade. Desagradável. Não. A noite é que, a partir de certo momento, tornara-se desagradável. Como alguém pode transformar-se noutra pessoa após algumas taças de vinho? Ainda em frente ao restaurante, teve vontade de voltar. Recusou a ajuda do porteiro que se prontificara a chamar-lhe um táxi. Caminhou diversas quadras e nada. E agora, o que fazer? Não havia ninguém na rua às três e meia da manhã. Não voltaria ao restaurante, suas convicções é que estavam em jogo e não o medo de ser assaltada. Era insuportável ficar à mesa vendo dois homens que se julgavam inteligentes passarem à quinta garrafa de vinho tinto. Se contara direito, já eram quatro Condes de Rotschild a produzir piadas de mau-gosto, grosseria e muita lamúria. Os gênios mal-compreendidos bebiam, alternavam risadas estridentes com a expressão idiota de que o mundo não os compreendia. Degradante. Como falaram bobagens, meu Deus. Só podia estar agora caminhando nessa escuridão sem saber para onde estava indo, como chegar em casa. Nunca perdoaria Carlos Augusto por isto. Parou na esquina, um carro passou e o homem que dirigia fez um sinal. Não, não era mulher da vida. Bom, se fosse resolveria o problema. Virou o rosto e ele desistiu. Viu que na metade da quadra havia movimento de pessoas. Talvez fosse um outro bar. Começou a dirigir-se para lá quando um carro parou novamente e alguém perguntou se não estava muito solitária. Quase gritou que não e passou a caminhar mais rápido. Na entrada do bar observou um ambiente de outros que já deviam ter bebido muito mais do que cinco garrafas de vinho. Perguntou ao garçom se tinha telefone para chamar um táxi. Sim. Só pode usar se tomar algum drinque. Que absurdo. Pelo menos estava mais segura ali dentro e um drinque talvez a acalmasse um pouco. Gin-tônica. Não. Gin puro sem gelo. Quero ficar anestesiada. Bebeu. Pediu mais um. Bebeu. Pediu outro. Acabou sentando numa roda em que os drinques eram de várias origens e onde as bobagens eram diversas. Resolveu falar besteiras junto com eles. Falou muito, mal acabava uma frase não sabia o que havia falado na anterior. Pode ser que tivesse repetido a mesma por horas ou durante o resto da noite. Era o medo que a arrastava para longe dele, não era ela, mas o medo de que noites desse tipo se repetissem de vez em quando, seria insuportável. Sim, a eventual taça de vinho se transforma nas mesas de bares. Baudelaire, meia garrafa eventual e por hábito, e a certeza de que outras mais revelam no homem, que é mau por natureza, a crueldade triplicada. Hora do táxi, cinco da manhã. Levantou-se e pediu para o garçom que fizesse a chamada. Despediu-se de todos e foi para a calçada. Ainda chuviscava, havia neblina, névoa, ameaçava chover e esfriar bastante. O inverno se aproximava e logo estaria chegando em casa. Boa questão. Iria para a sua ou para a dele? Melhor ir para a sua, pensou. Sabe-se lá o que o vinho pode produzir além de lamúrias. Táxi. Endereço. Táxi novamente. Outro endereço. Estava se cansando de ir para todos os lugares e não pertencer a nenhum. Como se fugisse ou estivesse protegendo atitudes consideradas imorais. Sim. Táxis servem para levar até o aeroporto e para fugir. O gin produz, entre outras coisas, choro. Começou a chorar e o taxista perguntou se estava bem. Sim, meu daschund morreu esta manhã e saí para esquecer. Foi um bom companheiro por quatro anos. Bom motivo para chorar, disse ele, a morte de um cão sempre é triste. Anna pensou que seu cão era invisível, mas que a morte de um companheiro de quatro anos era real, bem real. Lembrou de Carlos Augusto. Apertou o choro. Borrou a maquiagem. Sentiu a miséria da vida numa história que não era verdadeira dentro de um sentimento que era mais que a verdade, era sentimento. Sentimentos não deviam existir, produzem taças de vinho coloridas e mais tarde amassadas e esquecidas no armário da cozinha. Acabam por ficar atrás das xícaras de cafezinho, da cafeteira italiana e das migalhas de pão francês do início da semana. O carro estacionou, o taxista ainda falava qualquer coisa como os cães dão mesmo muito trabalho, bateu a porta do carro e ainda com os olhos lacrimejantes viu alguém sentado no cordão da calçada, uma garrafa entre as pernas. Quem sabe sentasse ali com o estranho para ver o dia nascer, enquanto algo terminaria de morrer dentro de si? A morte é necessária à vida e aos sentimentos. Melhor que um deles suma da nossa frente do que nós diante do mundo. Uma grande taça de vinho amarelo, o mundo. O cristal puro, que um dia tinha sido promissor, acaba por ficar com o conteúdo amarelado pelo que vem depois. Nós fazemos o mundo amarelado até que a taça quebre ou o líquido apodreça de vez e dê náuseas em quem ainda ousar tomá-lo. Se tivesse a taça na mão salvaria o mundo, já que deus não tem coragem de atirá-la para bem longe. Ainda tem aí um drinque sobrando, pergunta chorosa para o desconhecido de cabeça baixa, com os olhos grudados na garrafa de vinho. Ele levanta os olhos injetados do líquido bordô e ela acha que o conhece. Sim. É ele, o homem que deixou no restaurante, Carlos Augusto. Qual seria a classificação desse exemplar de Conde de Rotschild que ele carregava agora? Oitava garrafa, diz o namorado, há duas horas que estou aqui sentado, te esperando, e há mais de quatro anos que estamos juntos e não estamos. Onde você estava? Na missa do primeiro horário, disse, maldosa. Deveria ir de vez em quando, antes de produzir ódio em quem te ama. Se você me amasse, não sentiria ódio como diz, tentaria me compreender, resmungou Carlos Augusto. Desculpe, esqueci que você ainda acredita em casamento com flores de laranjeira, promessas de companheirismo na saúde e na doença, na alegria e na tristeza. Não dava para acreditar, era o seu amor que estava ali, naquele cordão de calçada, àquela hora do amanhecer, a sua espera. Será que ele estava feliz ou ela é que tinha bebido demais? Não. Ele estava feliz. E muito. Comoveu-se. Ela decidiu que apostaria nas folhas de laranjeira. Sim, Carlos Augusto, eu aceito, casaremos amanhã mesmo, disse. Roupa amarrotada e suja, o olhar entornado, água ou vinho?, ele não disse uma palavra. Atirou a taça no meio da rua, virou-se e precipitou-se a caminhar. Não correu atrás dele. Não. Precisava ter certeza da cor do líquido que se espalhara antes que desaparecesse por completo entre os vãos das pedras. Correu para o meio da rua, ajoelhou-se, rasgou a meia e raspando a pele nas lajes sem simetria tentou fixar os olhos, mas não conseguiu ver a cor. Tudo estava acabando. Deus afinal se decidira. Anna Karenina ajoelhou-se, acabara de testemunhar o supremo ato de rebeldia. Deus já ia longe, quase dobrava a esquina.
Publicado in: Oficina de Criação Literária Assis Brasil Contos de Oficina 19
e na Antologia Concurso Nacional de Contos Josué Guimarães 1997