1 de outubro de 2005

Partituras

Ele vive em completo isolamento num bairro da zona sul, diz Itsa com gestos apressados e nervosos. Deve ser uma pessoa fascinante, continua, empolgada com a idéia de visitar o escritor já esquecido. Sim, diz Sebastian, e a casa dele provavelmente é diferente de tudo que conhecemos, ironiza. Podemos ir, desde que tu não resolvas mudar para lá. Sei como tu és quando te empolgas, não tens limites. Os olhos de Itsa brilham. Por que tanto interesse em ir, pergunta Sebastian. Queres te tornar escritora? Não, ela não quer. Gostaria apenas de ver a expressão nos olhos do escritor a falar de auroras e do sol, da noite e das estrelas, das lágrimas e do amor. Talvez até ele se comovesse na presença de ambos e deixasse rolar uma lágrima emocionada pela face. Itsa, testemunha da criação. Da mesma forma como vira Sebastian transformar-se num rapaz alto, de rosto quadrado e maxilares salientes, de grandes olhos cinzentos. Um jeito despojado, vinte e um anos e dono de um bar noturno. Itsa estudava artes plásticas. Ruiva, com olhos amendoados, não era alta, apenas com uma magreza acentuada e uma mania estranha de estar sempre com um livro grudado junto à bolsa. Por vezes os livros, tão velhos, levavam Sebastian a ter a impressão de que os insetos microscópicos, alojados nas folhas, seriam acolhidos através da sua pele e da sua roupa tão limpa, elevando a repugnância. Folhas de papéis funcionavam para ele como agentes morbíficos e perigosos. É claro que nunca diria isto a Itsa. A magoaria demais. Estava sempre a fazer qualquer coisa por ela, mimava suas vontades excêntricas sem, é claro, sentir-se dentro de um mar tempestuoso que beija o universo com suas ondas, como ela dissera quando vira o mar pela primeira vez. Ou quando descobrira as obras de Aristóteles. Deus, tivera que ouvir por meses uma história de que as letras e os sons — afeições da alma e das coisas — são iguais para todos no mundo. E só para vê-la feliz passara por momentos de desespero.
Dirigem-se ao bar de Sebastian. É noite e faz muito frio. A música soa alta, porém suave. O olhar amendoado de Itsa é triste e incomoda Sebastian. Tenta animá-la, perguntando se ela já esqueceu Aristóteles. Como poderia esquecer o bom e sábio estagirita? Se todas as pessoas o tivessem lido, poderiam dizer para si próprias coisas que as transformassem um pouco. E, mesmo em silêncio, ninguém escutaria, fosse algo pretensioso ou uma loucura caprichosa desse silêncio. Estranho, as pessoas que conhecia falavam durante tanto tempo. Sebastian sentiu que não conseguiria sustentar a conversa, não hoje. Cansado como estava. Qualquer frase que dissesse sobre o assunto seria de Itsa. Sabia que nenhuma delas lhe pertencia. Soavam de forma artificial em seus lábios. Não eram parte de seu coração, de seu interior. Não respirava o mesmo ar de Itsa e quando tentava, convertia-se num impostor, capaz de forjar sentimentos e palavras. Sua natureza era outra. Chegará o dia em que ela irá perceber, a natureza de ambos não mudará e nada será feito. O destino une as pessoas como bem entende. Apesar de se conhecerem há mais de cinco anos, a distância se aproximava deles. Mais uma dose de uísque, diz Itsa, interrompendo os pensamentos de Sebastian e recriminando-o, desse jeito ainda estará bêbado quando formos visitar o escritor. Sim, mais uma dose com pouco gelo. Algumas mais para espantar o frio. E outras ainda, para comemorar a distância que se instalava. Itsa torna a ficar ausente, olha para os copos que chegam às mesas das pessoas e sente-se desanimar. Quem lhe mostraria, como Henry Miller fizera à Anaís, tudo aquilo que se pode sentir no mundo porque se pode conhecer a vida deste mundo com olhos de completa paixão e transformá-lo em poesia, em sabedoria do coração? A noite foi infinita entre doses de uísque e a sua impaciência para que o outro dia chegasse logo. O que Henry Miller pensaria sobre este lugar? Com certeza iria adorar. E além disso, saberia tirar dessa mesmice noturna algo que não fosse só copos de bebidas, fumaças de cigarros, cachimbos e cheiros que se produzem e se espalham nesses lugares que prometem muito e que nada cumprem. Bares noturnos são promessas não cumpridas. Bebidas repetidas. Cigarros amassados. Cachimbos amarelados. Olhares cansados e sem lucidez. Amanhecer que espera outro anoitecer. Uma nova noite a prometer algo que, talvez, venha a se cumprir. Sim, um dia e então eu não me sentirei tola o bastante por ter acreditado, por ter esperado que copos de vinho se transformassem em uma descoberta de mim mesma. Algumas pessoas que vejo agora, quarenta, cinqüenta anos, ainda esperam descobrir algo que o bar lhes prometeu, quem sabe há quanto tempo, dez ou quinze anos? Quanta paciência. Henrys Millers não nascem em bares. E não esperam que suas promessas dancem numa pista a procura do Santo Graal.
Quando chegaram para visitá-lo, Itsa logo viu as janelas e portas abertas. Continuava muito frio. Pararam na entrada da casa. Sebastian ficou contente com o que viu. Era uma casa comum, até simples demais para qualquer pessoa. Quase pobre. Poucos móveis, velhos e espalhados sem nenhuma preocupação estética. Itsa frustrou-se momentaneamente. Onde ele estava? Talvez fazendo algo emocionante, raro. Esperava surpreendê-lo em profundas divagações. Ao contrário, encontra um corpo obeso e envelhecido aquecendo-se junto a um forno. Mas ela também fazia isto. Sua mãe aproveitava para assar pão. Sebastian aquecia-se. Seu pai contava piadas. O que ele estava fazendo? Assando pão? Contando piadas para si mesmo em silêncio? A visão do escritor com frio e a casa aberta não lhe pareceu interessante. Desconfortável, diria. Sebastian acabou por fazer um sinal para que voltassem. Neste instante, Heráclito virou-se, era tarde, ele os vira. Leu em suas fisionomias o desejo frustrado.
‘Entrem meus jovens’, diz ele,‘também aqui os deuses estão presentes.’ Ao ouvir isto, Itsa ilumina o olhar, as palavras dele transformaram o forno antigo e o frio do desconforto, a banalidade da existência. Sebastian perdera o sábado, Itsa sentiu ganhar vários. Porém, o fascínio exagerado do olhar de Itsa sobre aquelas mãos gordas e olhos carregados de rugas escurecidas começou a incomodá-lo. Conteve-se. Permaneceu em silêncio sentado numa poltrona que também deveria ser velha, manchas escuras e rugosas se espalhavam pelo ambiente de um jeito muito natural. Não entendia do que falavam. Recordou-se das noites que passaram na casa dele, quando Itsa lhe dissera palavras tão densas de amor e que chegara a escrevê-las, recordou-se das palavras, recordou-se do amor, recordou-se de outra Itsa, daquela que chegara a possuir e que agora o trocava por aquela criatura corpulenta com um cérebro capaz de juntar as letras para formarem o som que quisesse.
‘Penso que tudo afinal se resume em entender o amor. Que finalidade quer impor na nossa alma? Não sei. Começamos a nos encontrar. Tu falas pouco, Sebastian, muito pouco. E me olhas estranhamente. E assim como toda tua suavidade e silêncio me encantam, sei que amas algo em mim que não és capaz de possuir. De Itsa para Sebastian, com amor.’ As lembranças flutuam na cabeça de Sebastian, quanto tempo se passara desde que Itsa escrevera isto? Vinte anos? Não. Não mais do que um ano é o tempo que esta partitura existe e, no entanto, flutua distante com a dor muito perto. Eu ficava olhando Itsa tirar a roupa. Eu fazia parte de sua intimidade. Uma intimidade que eu não compreendia. Rezei para que ela não percebesse ou sentisse um vazio sem retorno diante da companhia que não consegui ser. Ao contrário de Itsa, Sebastian nada escreve. Sofre, apenas.
As novas partituras
Os passos de Itsa, lentos, Sebastian tenta apressá-la. Meia hora em silêncio. Itsa rememorando o que ouvira. Sebastian remoendo-se de ciúme com lembranças a atormentá-lo. Sebastian, diz ela, Heráclito não é formidável? O quanto já leu. E a sabedoria da sua alma, então. Que encanto. Leu tudo de Aristóteles, nem acredito. Sim, sim , sim, Itsa, diz ele impaciente apressando o passo antes que ela resolvesse voltar, ouvi umas vinte vezes a bobagem de que ‘a ausência de uma sensação esperada é suficiente para fazer voltar os que acabam de chegar’. Ao que parece, tivemos ambos esta sensação. Você, porém, obstinada, não sairia de lá sem que o velho lhe dissesse algo formidável, dos deuses, não é mesmo? disse ressentido, achei tudo muito ridículo.
Está com ciúmes de um senhor de setenta anos, Sebastian? É certo que você não tem a sabedoria dele, mas ainda é jovem, ela o consola. Você fala como se fosse uma velha, diz ele enciumado. Está bem, Sebastian. Nada há que importa, nada senão entregar-me a este mundo que se abre, incerto e duvidoso. No entanto, é dele que necessito, deste mundo que possui datas incertas, olhares incertos, cores e passos igualmente duvidosos. Tanta adoração pela incerteza da vida funcionava nele como dor, muita dor, maior do que seu coração era capaz de agüentar. O incerto não o atraía. Contudo, o tempo que temos junto de alguém é assim mesmo, impreciso e indeterminado, vacilante e irresoluto. O que estava acontecendo com Itsa? Quem hoje, seguiria as pegadas de um velho, tendo que sublimar sua juventude e conviver com rugas estampadas à sua frente, só porque tinha a sabedoria do coração? A estava perdendo para isto? Sim, a perdia. O que seria dele que a amava tanto? E dela, que estava partindo?
A noite, em casa, Itsa iniciou um novo diário. Não abandonaria a idéia que parecia salvá-la, apenas a transformaria. Enquanto Henry Miller buscara nos escritores russos a satisfação para o seu descontentamento, ela iria recorrer a alguém já velho e esquecido, mas que numa só tarde havia lhe falara sobre Goethe, Baudelaire e Rimbaud. Sebastian não compreendia a vida como uma ligação sem fim onde as pessoas se condenam e se salvam através de si mesmas e de outras, sem importar que tenham vinte ou setenta anos. A primeira coisa que a frustou seria também a primeira a salvá-la. Buscaria suas promessas, não mais em um bar noturno. Buscaria lá, diante daquele forno enferrujado e daquelas mãos enrugadas.
Fim de uma partitura
As mãos enrugadas se foram. Durante muitos dias Itsa ficara submersa em sua própria angústia. Rodeada pelo tumulto e escuridão que a envolvera, se isolara do mundo e das pessoas. Sabia porque estava fazendo isso. Não queria que ele tivesse partido. Não agora e, no entanto, não pudera escolher. Sentou-se sobre si mesma e chorou pelas coisas que a vida não permitia coexistirem juntas e em paz. Vivemos entre eternos antagônicos: amar ou odiar, falar ou silenciar, viver ou morrer. A vida impõe isto a todo instante, escolhas. Renderia lágrimas e orações a quem tirara Heráclito da vida. Onde depositaria a sua tristeza de mortalidade? Saiu a caminhar. Precisava voltar a viver. E teria que ser perto daquilo que simbolizava a distância da pessoa que mais amara e por tão pouco tempo pudera estar junto a ela. Foi em direção ao cemitério. Também lá houve uma época em que não conhecia ninguém. Agora era diferente. O que poderia haver por detrás do portão de segredos tão obscuros? De imagem tão tristes e fortes? Quisera se perder por entre as escolhas que fazia. Entrou. Quisera se perder por entre os portões tão fechados sobre si mesmos como divisores de dois mundos.
Anna & os Delírios sobre um Heráclito-Real-Fictício
Conto publicado em Oficina de Contos 19
& Antologia Nacional de Contos Josué Guimarãe