20 de setembro de 2005

Ele ainda não sorri


Eu te amo, não-existencialmente. Sempre que parava, não parava. Minha casa, um hotel no qual eu era hóspede para o banho e o sono. Eu não pertencia nem mesmo ao meu quarto, lugar onde depositamos nossas lembranças e perfumes mais sagrados. Não respeitava o sagrado. Nada importava. Nada tinha rumo ou lugar definido. Reencontros. Dias felizes. Despedidas. Incertezas. Gangorra afetiva de sentimentos. Depositei a esperança de vê-lo sorrir, de fazê-lo feliz como quem deposita sua vida diante de um enigma sem solução. Encontrei-o na próxima curva sem complacência. Apressei minha perda. Sinto tristeza de ver o dia amanhecer. Que horas são, ele pergunta sonolento. Apenas nove horas e para quem foi dormir às sete, ainda é muito cedo, respondo a ele. Levanta indiferente aos meus protestos e começa a vestir-se. Com tanto frio demora a colocar tanta roupa e eu agradeço ao inverno estes minutos. Fico deitada olhando em silêncio seus movimentos letárgicos. O cheiro do frio, misturado com os lençóis e perfumes da noite passada, começa a me dar um desespero inicial. De sempre. Age como se estivesse sozinho. Sinto vontade de puxá-lo, dar-lhe um beijo, mas sem ação, não me movo. O gosto do cigarro e do vinho estão ainda impregnados. Ele sobe as escadas do quarto para o mezanino e diz que não preciso levantar, jogará a chave pela janela. Sai. Ouço o bater das chaves no chão
Daqui a uma semana este amanhecer se repetirá de novo.
E ele ainda não sorri.
Exercício literário de lembranças tardias
1996