22 de agosto de 2005

Dos Anjos


Dos Anjos. Quem? Ficou um tempo enorme no banheiro, o Seu Dos Anjos. Talvez fosse possível que começasse, de repente, a escorrer sangue por baixo da porta, que ele escolhera o consultório para cortar os pulsos. Demorou. Volta como quem caminha arrependido. Senta como alguém que sente estar num lugar desconfortável, mas qualquer lugar seria assim, porque Dos Anjos leva necessariamente o Seu Dos Anjos junto consigo quando muda de lugar. Mudou. Sentou-se no sofá. Este homem dói por dentro tão calado em sua dor já está. Carrega toda a humanidade com a expressão de desalento não disfarçado. Cego, não enxerga mais nada. E o que lê não o torna diferente se não tivesse lido. Tudo tão igual, um jornal a mais ou a menos e o mundo se salvaria? Dos Anjos com certeza não pensa assim. Coloca o jornal lentamente na mesa de centro, fica olhando para suas mãos em cima do abdômen como uma criança de castigo que olha para baixo, olha para seus dedos, não quer que alguém perceba que chora. Mas Dos Anjos não chora. Não fala. Não faz barulho nenhum, nada. Talvez não queira importunar os outros, então vive quase como se não respirasse. Talvez se permita somente isso: respirar. Ainda assim passa a sensação dolorosa de que toda a metafísica do universo se escondeu por detrás de seu corpo tão frágil. Um peso muito grande para um só ser humano. Por isso ele se arrasta, por isso ele nasceu cansado. Cansado dos outros, cansado de si mesmo e a metafísica ainda lá, oculta. Dos Anjos continua com os olhos de quem parou de chorar minutos atrás. Mas ele não era do tipo que não chora mais? Ouço ele murmurar num som quase inaudível como se estivesse sozinho, "Quem foi que viu a minha Dor chorando?" Está pensando? Respirando? Lembrando? Brinca com sua memória? A poesia em ritmo não-poético é murmurada lentamente: "Vês?! Ninguém assistiu ao formidável enterro de tua última quimera. Somente a Ingratidão — esta pantera — foi tua companheira inseparável. Acostuma-te à lama que te espera. O Homem, que, nesta terra miserável, mora, entre feras, sente inevitável necessidade de também ser fera. Toma um fósforo acende teu cigarro. O beijo, amigo, é a véspera do escarro, a mão que afaga é a mesma que apedreja. Se a alguém causa inda pena a tua chaga, apedreja essa mão vil que te afaga, escarra nessa boca que te beija." Repetiu a poesia por três vezes. Antes que o galo cante Dos Anjos será negado por três vezes em seus Versos Intimos? Ele levanta, entra no consultório. Eu acendo um último cigarro enquanto ouço a porta bater entre o desaparecimento de Dos Anjos e a voz alegre do terapeuta. Digo para mim mesma, também por três vezes: "Depois" é a minha vez. "Depois" sou eu. "Depois." Deixa para lá, meus versos íntimos também não me negarão por três vezes.

Anna K. & a Poesia de Dos Anjos Negada por Três vezes num Consultório_ negada em outros lugares & Tempos & Espaços