24 de agosto de 2005

Cedo demais


Levantei-me cedo. Saí quando poucas pessoas começavam a andar pelas ruas e ainda estava escuro. Na minha frente uma senhora caminha deixando exalar um forte perfume e que eu sinto através dos meus passos rápidos. Não lembro qual é o perfume, mas a minha infância, nesse momento reapareceu como se o perfume respirado se transformasse em imagens confusas e dispersas, rápidas e lentas sem que pudesse ainda oferecer algo em minha vida. E, no entanto, eu as recordava_ ou as inventava_ numa última tentativa de um algo a ser convertido em imaginário e, logo em seguida, abandonado. Continuei a caminhar. E se eu a parasse e perguntasse qual o perfume? Não. Talvez o nome não dissesse nada. Às vezes o ar ao nosso redor lembra mais do que qualquer outra coisa. Mesmo um nome, não significa nada. E os sonhos? Se fossem tão importantes a humanidade teria o hábito de, após levantar-se, escrever sobre a noite que tivera. Quem sabe a humanidade não sonha. Ou não acredita em seus sonhos. A senhora continua à minha frente. E o perfume também. E o sonho não me sai da cabeça,
‘ele me recebera com todo carinho e pediu que eu entrasse na sala, mandou que seus filhos e minha irmã, que estava conversando com ele, saíssem. Mas não tenho irmã. E ele não tem dois filhos. Também não temos uma sala ou carícias. Mas ajudou-me a livrar-me da inquietação. Tratou-me de um jeito sedutor. Senti-me unida a alguém que não queria ser próxima. Confortou-me, abraçou-me e o calor de seu corpo acabou por despertar algo que, até aquele momento não sentia. Saímos da sala e ele diz que irá socorrer outras pessoas, realmente machucadas. Precisam de cuidados médicos. Ao contrário de mim que não precisava de mercúrio, bisturis ou chumaços de algodão pelo corpo, porém em minha alma. Sim, talvez o sonho fizesse algum sentido. Necessitava de chumaços de algodão espalhados com bastante anestésicos pelas dores do meu interior. O perfume estava ainda à frente, agora mais próximo. No sonho não tinha. Mas houve um sonho e agora há um perfume. Entrei numa cafeteria. O primeiro café da manhã reprime o primeiro cigarro. Pedi um café forte com bastante açúcar e alguns pãezinhos de queijo com requeijão. O garçom foi lentamente buscar o que havia pedido. Olhei para um senhor de cabelos com um tom acinzentado e expressão compenetrada em um papel. O que teria sonhado naquela noite? Talvez fosse algo importante e não estava dando a devida atenção para si mesmo. Levantei-me e fui até sua mesa. Pedi para sentar-me. Olhou-me e disse que sim, sem dar muita importância ou olhar detidamente para mim. Sim, eu poderia sentar-me, suspirei. Será que poderia perguntar o que sonhara? Comecei dizendo que tivera um sonho perturbador naquela noite. Olhou-me como se eu tivesse algum problema. Arrisquei e fiz a pergunta. Sua expressão agora denotava uma certa ironia. Tomou um gole do seu café que já estava no fim e respondeu-me que sim. Tivera um sonho. Mas não sabia o que queria dizer. Se queria dizer. Contou-me : dizia para si, como se estivesse dialogando com outra pessoa que na verdade era ele próprio, quando dormia era invadido por sensações muito fortes. Como se fosse possuído pelo seu inconsciente ou forças de outro mundo tomassem seu corpo inerte enquanto descansava. Fiquei confusa naquele instante. Amanhecer frio. Perfume. Sonho. Cafeteria. O senhor acinzentado com seu belo rosto pontuado ironicamente. E um sonho que realmente tinha algo para ser interpretado. De repente ele se levanta. A senhora do perfume havia entrado na cafeteria. Trocaram-se um afetuoso bom dia e saíram de mãos dadas. Então era com ele que o seu perfume de infância andava? Saí para a rua decidida a arrancar o meu sonho. Alguém sonhara algo importante. Sim, alguém com quem acabara de trocar palavras, sem que elas estivessem embebidas num chumaço de algodão com anestésicos e a encobrir loucuras do imaginário. Sem me perguntar se haveria perfumes da década de oitenta a serem recordados eu continuei a andar, eu havia levantado cedo, cedo demais nessa manhã.
Anna K. & As Experiências Psicanalíticas
1996