Esperamos que se lembre de todas as suas perguntas
Esperamos que se lembre de todas as suas perguntas. Durante muitos dias nada dissera, nada escrevera, lera ou pensara. Submersa. Lembrou-se de Drapper ‘cristianismo e ciência, não lhes é possível existir lado a lado, a humanidade tem que fazer sua escolha, pois não pode ter os dois’. Não pode ter os dois, isto ficou a bater em sua mente, não queria algo, não queria algo com todas as suas forças, não queria enxergar o que não queria. Sem saber porquê ou para quê sentou-se sobre si mesma e chorou. Por que não estava no lugar certo, não pensava ou fazia as coisas certas. Queria acertar. Mas havia outras pessoas e outros pensamentos perdidos por entre os acertos. Havia um exagero no ar. Era preciso sempre estar escolhendo entre vários antagônicos: admirar o sol ou admirar a lua, admirar as lágrimas, admirar o riso. Este constante escolher a deixava exausta. Era um escolher para o mesmo ato em diferentes coisas existentes. As pessoas pensam que escolhem "coisas", não, escolhem sempre um "ato" em direção à algo. Como se confundem. Escolher errado é perigoso e quando o "estar certo" está, porém, errado para a vida, aí então moram certezas de escolhas. Achou que delirava. Achou até que morrera. Gostaria de ler algo que a retirasse do estado amorfo. Palavras sem mesmices de sensações, pois elas eram apenas o detalhe "do depois" das sensações. Desejava palavras invertidas, frases desmontadas e textos recortados. Algo não fazia sentido. Por que não tinha o direito de saber o seu próprio sentido? A resposta, é claro, não viria dela, pois com certeza mentiria para si mesma, compreender seu próprio sentido a faria negar seu destino. Não temos a tendência de nos apegarmos aquilo que sabemos ser efêmero ou gostar de coisas ou pessoas passageiras e, no entanto, somos passageiros de nós mesmos e nesse ser-transitório depositamos nossa tristeza de mortalidade. Também nossas dissimulações de continuar esperando pelo "depois", o "depois" das sensações.
No cemitério: não sabia quem iria visitar, também lá não conhecia ninguém. Parou na frente, uma enorme pedra ao lado do portão de entrada, torneado com ferro e antiquíssimo, recebia os visitantes com a seguinte frase escrita em spray preto : ‘você não poderá levar coisas materiais, viagem sem bagagem, aqui termina você, aqui começam suas respostas, esperamos que se lembre de todas as perguntas.
Sensata-brincadeira. E tinha a ver com o "depois" de todas as sensações.
Exercício Literário
1996