11 de setembro de 2005

Adeus repentino?

Experimentou, dissimuladamente pela cor forjada da meia-noite, uma sensação de liberdade instantânea, livre de sua própria dor. Na gaveta da escrivaninha pegou a caixa de madeira pau-marfim, simples quadrado simétrico de cor delicada. Abriu-a. Vários papéis em desordem se acumulavam com pétalas de rosa secas e outras lembranças. Ele fora bom com ela, tinha que admitir. Deixara tantas e tantas lembranças. E ela nem agradecera. Pegou uma das folhas, bastante manuseada e com borrões de algum líquido que deformara as letras e leu: ‘tentar o reconstruir de escuras lembranças que exigem toda a concentração do nosso espírito.’ Ele nunca dissera nada e quando esperava um discurso, não eram mais do que bilhetes resumidos de outros bilhetes. Nunca fora prolixo com palavras. Ela nunca fora prolixa em atitudes. Além disso ele só utilizava palavras conhecidas. Do que exatamente ele era formado? E ela? Esperar um novo dia e mais outro e continuamente e ainda assim talvez nada soubesse. Lembrou de Carlos Augusto no verão, no mar e nas águas deste mar. Saudade. A expressão ambígua de criança e bruscamente dura. De que adiantava repassar sensações mortas que não o trariam de volta? Agora o compreendia, os planos dele não se encaixavam no meio da multidão, sua solidão sim. Qual deles seria realmente parte da multidão? De que servem imagens passadas? Exigia tanto esforço "consertar" o não-dito, o não-realizado e o não-sentido. Agora só ela saberia o que estava consertando. Pureza de transferência de um amor para outro como forma de conservar o primeiro vivo dentro de si. Transferência ilusória sem resultados se repetia. Displicência silenciosa e incopiável. Era contraditório ter saudades do que não viveu. As pessoas não voltam para perguntar e talvez isto seja o mais sensato. A sensatez deve ser o caminho, trabalhar o interior em direção à disciplina e ao equilíbrio, matar a espontaneidade das emoções para viver prudentemente. Parecia absurdo. Mas era o que todos lutavam para ser. Para viver o real. Desanimadamente pensou que o real nunca lhe faria feliz. O mundo repleto de pessoas discretas — normais e sem graça — vivendo e compactuando aridez. Que fossem habitar as geleiras azuis.
— Itsa — gritou Salvatore do quarto — larga este catecismo dogmático que cismou em escrever e vem dormir.
Iria sim. Mas antes acrescentaria mais um nome na lista de espera das geleiras. E assim que o fez pegou alguns livros e saiu. Em cima da xícara de café, pela metade e já frio, um bilhete para Salvatore enquanto ela ia embora com as lembranças de Carlos Augusto: ‘Não me deixaste cair no buraco de terra marrom. Mas não conseguiste, a tempo, pegar-me pelas mãos, a correnteza e a água abundante levaram-me com força para longe. Quando eu vi estava novamente em terra firme com pessoas que julgava serem desconhecidas. Adeus.' Itsa