25 de setembro de 2005

Depois de Santander


Já não faz tanto frio. Canso da Espanha. Estou passando pelo túnel da rua Péron. Escuro, repleto de neblina, poucos pensam em entrar. Entro, como sempre nas tardes chuvosas e não chuvosas. Passos lentos, cada vez mais vagarosos. Continuo caminhando e meus olhos aos poucos se acostumam à escuridão e ao mau cheiro. Tipo de lugar só para quem não sente mais nada com o que vê. A sensibilidade fica nos meus passos nesse imenso corredor cada vez que o atravesso. Estou chegando ao final. Venço o escuro. O mau cheiro. O medo dos outros. Sinto-me bem. Levanto os olhos para a claridade que me incomoda. O mundo deveria ser só noite. Eu deveria ser só noite e nada mais. Ando muito tempo calado. Não consigo ser sociável, conversar sobre as plantas, o carro que não funcionou, o filme que está passando ou simples palavras de cortesia. Tudo muito chato. Meu roteiro não sei qual é. Melhor estar perdido que alienado num ir e vir. Com ou sem roteiros. Ou túneis. Ou quando já não se sente mais nada pela dormência que a alma exige, sem a qual não poderia sobreviver. Enlouqueceria. Talvez completamente embriagada. Enquanto puder andar, seguirei as pegadas do túnel e fugirei de roteiros nos quais se deduz a vida de uma forma muito fácil e nojenta. Ia me esquecendo. Me chamo Martín Henriquez e moro em Santander, norte da Espanha, desde que nasci. Mais precisamente na Plaza Mayor, número sete, terceira casa à esquerda e a segunda mais antiga do subúrbio. De volta à claridade, vejo nos meus sapatos resíduos do túnel. Estou sempre de calça e camisa ou pulôver pretos. O gosto do cigarro não é o mesmo, talvez impregnado do cheiro forte de umidade e mofo que habitam o lugar.
Helena estava entediada. Há muito que já sentia um profundo vazio. No aeroporto o alto falante anunciava o embarque imediato. Helena, como sempre, estava atrasada. Respirou fundo. Chegar em Santander com chuva não era um bom presságio. Procurou se desvencilhar das centenas de pessoas que estavam no aeroporto e pediu ao motorista do táxi que a levasse para o Hotel. Viajar sozinha também a angustiava. Decidiu caminhar por perto do Hotel. Depois de andar por algumas ruas estreitas e assimétricas, percebeu estar perdida. Neste momento viu um rapaz saindo de um túnel à sua direita. Parecia a visão de um filme de terceira categoria. Um túnel enfumaçado e sujo e a personagem aparecendo do nada como se fosse o filme em preto — toda a sua roupa — e branco — toda a palidez de sua pele. Viu que ele levantou os olhos em sua direção. Aproximou-se com passos incertos. Precisava saber como voltar ao hotel. Sim, ele conhecia o local, estava bem distante — disse de forma displicente, com o cigarro entre os dedos. Seria melhor se pegasse um táxi ou se quisesse poderia atalhar pelo túnel, de onde ele viera.
— Pelo túnel — repetiu Helena, olhando para a escuridão fétida.
— Sim, túnel — disse ele, obviamente brincando, não acreditando que uma turista pudesse passar por ali. Olhava detidamente para Helena. Os saltos das botas que usava eram bem finos. Roupa impecável. Nenhum acessório preto, vestia bege.
— Bom — decidiu — você poderia acompanhar-me, então ?
Será que falava sério? É claro que a levaria para o outro lado. Começaram a caminhar. Martín sentiu novamente o escuro tão familiar. Deu-se conta, no entanto, que nunca havia feito isso. Nunca fizera o caminho inverso. Desorientou-se por alguns instantes. Ouviu que perguntava seu nome. Martín Henriquez. Helena di Tchenzo. O túnel parecia mais longo na ordem inversa. Como se estivesse no retorno de uma viagem — pensou Martín — como se visse os pensamentos voarem com a velocidade ruidosa dos passos, para trás. Como se o caminho marcado nas botas que ambos usavam tivessem a ver com lembranças. O cheiro forte de restos deteriorados fez com que pensasse na morte. E ela, o que estaria pensando? Ela, que era turista?
— Se tudo na vida que possui um cheiro semelhante a este é pressuposto para algo ruim, então a morte não deve ter nenhum brilho. A morte cheira muito mal — disse ele com uma voz bastante triste.
Pena, não podia ver seus olhos, pensou ela. Talvez estivessem mais tristes que sua voz. Mais alguns passos em silêncio, Martín se calara e Helena nada dissera.
— Sim — diz ela, depois de perceber que ele não continuaria a falar sozinho — a morte deveria ter cheiro de flores sem que elas estivessem presentes. Cheiro de luz sem que precisasse existir velas. Cheiro do outro mundo e não da morte que todos conhecemos — em parte, pensou ele.
— Martín — disse Helena, após alguns minutos — se a morte fosse algo bom então não precisaríamos viver. Se você não existisse eu não o conheceria. A morte existe e é só isso.
— Só que ela, Helena, é preta, chorosa e injusta. Bastante silenciosa. O silêncio me assusta às vezes. A você, não?
Sim, também a assustava. Na maior parte do tempo. Morrer é cair num silêncio eterno. A não ser que a alma possua sons — o que não é provável. O silêncio — continuou ela — começa no primeiro dia.
— Esperamos por ela sem esperar — disse ele. — Não sabemos quando chegará, não é verdade?
— Esperar é difícil. Ser mortal também, só que não é escolha. Perde-se a liberdade do corpo.
— Talvez possamos comparar com uma passagem gratuita, sem data, nem horários, se vamos acompanhados ou sozinhos. Um bilhete resumido. Todos o possuem — Martín concluiu.
— Sim, porém há aqueles que guardam numa gaveta e nunca abrem e outros que o carregam no bolso onde quer que possam ir.
— Quem sabe consideram importante um papel sem data? Sem assinatura — disse ele, enquanto isso ela olhou para o seu rosto contraído, pois haviam atravessado o túnel e já conseguia distingui-lo.
Talvez seja simplesmente um lugar ao céu. Não mais do que isso, pensou ela. Preferiu não dizer. Agradeceu a ajuda e pôs-se a caminhar de volta ao Hotel. Bem mais próximo do que ela imaginara — pensou Martín enquanto esperava que ela desaparecesse. Estranho, ela me passou a sensação de que pensava na morte como se já a conhecesse. Mas ela estivera com ele há poucos minutos. Vivia. E era linda. Muito linda com aqueles olhos negros que escondiam algo atrás da expressão ausente e fria.
Martín levantou-se com um peso enorme sobre os olhos . Seus sentimentos dilatavam-se por todos os lados. Não soube quais eram. Não era bom nisso. Foi até a cozinha. Remédios. Saiu para a rua. Estava ainda frio. Muito frio. Foi ao encontro da primeira bebida quente. Entraria no Café Péron. Abriu a porta e seus olhos se detiveram :
— Como vai, Helena? — sorriu, maroto — vieste pelo túnel?
— Não, Martín — disse ela, bastante alegre para aquela hora da manhã. — Sente-se comigo para tomarmos algo.
A voz de Helena denotava pontos de interrogação em cada palavra. Ela não se parecia com um desses pontos. Olhou detidamente. Sim, estava mais para linhas acentuadas, sujeito indeterminado com vários complementos que o deixavam com as mãos úmidas. Pediu café expresso. Helena pediu dois sanduíches de presunto e queijo. Comia com grande apetite. Devia ser saudável, acompanhada de felicidade eterna. Recriminou-se pelos seus pensamentos irônicos em relação a ela. A verdade é que estava na defensiva. E se a convidasse para jantar ?
A noite não foi um conto de fadas. Aliás, de fada só havia a presença de Helena. Após algumas besteiras, finalmente — para alívio de Martín — saíram do restaurante. Quase esquecera de pagar a conta. Levara um susto do total, pois havia muito tempo que não ia a lugares tão caros. Quando ela lhe perguntou onde era o toilete, por pouco não a mandou para a cozinha.
A casa de Martín era antiga, a pintura cinza já não era mais cinza. Adquirira sua própria cor. Helena sentou-se na poltrona azul de veludo. Ele foi fazer o café e aproveitou para tomar os remédios os quais também tinham uma cor esquisita. Estava a olhar se a ordem se encontrava correta quando viu que ela parara atrás :
— O que são esses inúmeros vidrinhos na prateleira, Martín ?
— Complexos vitamínicos — disse ele — já que não tenho o hábito de uma boa alimentação.
Helena ficou olhando. Nossa, eram oito vidros. Ouviu ele dizer, "o último é para a alma." Falou rindo, achou que ela é que precisava um pouco do remédio. Martín limitou-se a despejar algumas gotas na boca e devolvê-lo à prateleira. Helena não acreditou que precisasse daquelas gotas do oitavo vidro. Ou de algo em particular além do túnel e de suas frases estranhas. Fez o café em completo silêncio sem aparentar constrangimento. E porque haveria de tê-los ? A casa não era linda, mas afinal, era sua história. Ficou olhando, na frente de Martín, o pó de café, atrás dele, a menos de dez centímetros, dois pares de sapatos pretos jogados como se há muito tempo ele não os calçasse. Velhos e esquecidos. Voltou para a poltrona de veludo — a única que parecia sorrir. Ela jogada no veludo e os sapatos na cerâmica empoeirada. Ficou assim displicente por uns cinco minutos. Ele apareceu com as duas xícaras de café, sentou-se na sua frente. Helena lembrou-se que viajava dali três dias de volta à Itália. Quando voltasse talvez Alberto não lhe fosse tão familiar quanto antes. Com certeza, não ficara como os sapatos de Martín — esperando-a entristecido. Não, ele sabia se fazer lembrar por outras pessoas, as mulheres em especial. A distância é sempre perturbadora. Quem sabe chegasse na Itália mais preocupada com os tristes sapatos que vira na Espanha do que com a vida trivial que levava com Alberto. Seus sapatos nunca seriam tristes, pois não paravam em lugar algum. Assim como Alberto, eles viajavam muito, divertiam-se e bebiam bastante por vários lugares e com diferentes pessoas. Nunca poderiam ser sapatos entediados com a vida, graças a seu dono. Olhou para os pés de Martín. As botas pareciam um pouco mais alegres. É certo que estavam, como tudo ao redor, um pouco velhas. Ela é que estava ficando velha com essas comparações absurdas que vinha fazendo desde que entrara ali. Como se os móveis quisessem dividir o muito que já viram com quem ali estivesse. Não falavam, é claro. Percebeu Martín olhando-a desajeitado. Começou a desculpar-se pela bagunça e poeira, não tivera tempo para dar um jeito nisso. A poeira com certeza estava ali há mais do que um mês. Talvez os sapatos também. Desprendidos da vida e não se importando com poeiras e com os lugares corretos que destinamos a eles sem perguntar-lhes nada. Tarde. Não, noite. Voltava ao Hotel. Por um momento que se arrastou pelo quarto e pelas paredes e cortinas, sentiu-se vazia. Seu trabalho, tão importante, certamente não significaria nada para Martín. O que poderia haver de semelhante com seu mundo existencial o elaborar roupas para senhoras finas? Só preocupadas com a aparência? Era um trabalho de consumo. Então ela própria era isso. Adormeceu.
Acordou pensando em Martín. Afinal, o que haviam compartilhado nesses três dias em que se viram? Sua mãe não acreditaria que fizera uma viagem e não conhecera Santander ainda. Aliás não tinha mais vontade de ver coisa alguma. Só Martín. Tinha algo de vida em seu jeito de olhar. De ser. Sentiu-se consumir ao lembrar do seus olhos sobre ela. Queria fazer parte de outro mundo. Sem roupas fúteis, cabelos engomados e perfumes finos. Queria Martín, só isso. E Alberto? Era como as roupas que ela produzia : efêmeras e onde nunca alguém leria algo através delas. Não inspiravam vida. Só transições de bons instantes, iam embora e nada deixavam. Como se não existissem.
Não se viram nos dias em que ela ainda permaneceu em Santander. Nem ao menos uma despedida. Martín sumira. Helena ficara confinada ao Hotel perto do telefone. Fizera uma viagem para ficar escrava de uma ligação entre o colorido do papel de parede e o preto e branco de sentimentos e imagens recentes.
Maio. A Itália já não era mais como antes. Ao abrir a porta do apartamento de Alberto, teve um pressentimento de que havia alguém invadindo seu espaço.
— Alberto — gritou Helena, parada ainda na porta com as malas ao seu lado, viu ele sair do quarto.
— Helena, resolveu vir antes? — perguntou desconcertado e passando a mão pelo cabelo.
— Não, Alberto. Você deve ter esquecido a data do meu retorno — começou a dirigir-se ao quarto, mas ele a segurou pelo braço.
— Olha, Helena. Eu posso explicar o que está acontecendo.
— Eu posso imaginar, Alberto — parou na porta. Uma outra pessoa ocupava seu lugar, seu travesseiro, o ar ao redor que ocupava com seus pensamentos, sim, ocupava sua vida sem pedir licença. E Alberto permitia. Era realmente tudo o que precisava ver depois de voltar de Santander. Começou a virar as costas. Ele tentava explicar algo que nunca em momento algum da humanidade precisou ser explicado. Por que as pessoas insistiam em falar durante essas situações? Não havia nada a ser dito. Ou aceitava o que vira ou não. Era bem simples. Resolveu que não aceitaria. Pegou de volta as malas e saiu. Seu próprio apartamento seria o melhor lugar do mundo. Silencioso. Tentou definir o que poderia ser isso. No táxi ouviu um noticiário ao longe que falava ‘em 1940 os alemães ocuparam parte da França’, em 1997, Annabelle, conhecida como Anne, invadiu parte do território pertencente a Helena di Tchenzzo. Achou que era difícil ocupar algo que não nos pertencia realmente. Algo como lençóis, na verdade nunca foram só seus e de Alberto. Travesseiros, não reconheciam mais os rostos que nele deitavam porque eram muitos. Talvez o travesseiro que ocupava na cama de Alberto também a confundisse com outros rostos. Por que eles lhe dariam um tratamento diferente? A cada noite um novo rosto? Precisava descansar de tudo isso. Precisava dormir. Dormir muito e saber que não acordaria a mesma pessoa. Talvez outra que a ajudasse a compreender as pessoas. O que queriam para si mesmas a ponto de magoar tantas outras. Conquistar espaços. Valeria a pena? Tinha certeza de que Martín acharia que não. Sentiu saudades daquele olhar triste e das roupas pretas que usava. Consumiu sua vida com Alberto, fora muito estúpida ficando com ele e com suas gravatas de seda colorida.

Anna K. & Antigos Contos 1997
Conto publicado em Contos de Oficina 19 & na Antologia Nacional de Contos Josué Guimarães