2 de outubro de 2005

Uma Estadia com Nietzsche & Dante


‘Ah, há gelo em volta de mim; queima-se minha mão tocando em gelo! Há uma sede, em mim, que almeja pela vossa sede (...) É noite: somente agora despertam todos os cantos dos que amam. E também a minha alma é o canto de alguém que ama.’ Nietzsche

A inscrição suspensa no alto da porta conduzia ao vestíbulo do reino das trevas, ‘deixai, ó vós, que entrais aqui, toda esperança’, indiferentes ao bem e ao mal, excluídos do Céu e repelidos pelo Inferno. ‘Não seria isto, então, uma salvação?’, pergunta Dante a Nietzsche enquanto finaliza a história e termina seu café. Do outro lado da mesa Nietzsche permanece pensativo, ele sabe, irá se debater com seus escritos. Começa a pensar no caminho que leva ao alto da montanha de Zaratustra. Sim, aí também há uma inscrição e um portal. Já no quarto perturbando-se ainda mais com tal relação acaba por transportá-la a um semelhante significado: um certo prenúncio de se deixar para trás tudo aquilo pelo qual se viveu e se acreditou até então. Quantos são capazes disso sem chorar pelos dias que já não podem retornar? Zaratustra subiu à montanha sozinho. Houvera Virgílio como guia para passear pelo Inferno. Mas não há guias para o alto da montanha e nem tampouco há companhia. O limbo dantesco, repleto de anjos neutros, não seria mais suportável do que se permitir o desejo de entrar em si mesmo?, sucumbir sem o anseio de fim, seguir em frente sempre mais e mais deixando sangrar a própria vida. Há frio no percurso, há gelo no alto das montanhas, o calor da luz na planície ficará na planície, necessária para o 'calor' contínuo. O frio, necessário à nova inscrição dos infinitos portais, poderá ser o de que ainda é cedo, muito cedo para se olhar para estrelas inexistentes, demasiado tarde, muito tarde para continuar a cegar o olhar com sóis que já provocaram o não-ver, o não-viver e sobretudo o não-sentir. Nada me impede de desejar: tenho a cada dia e a cada noite vontade de tudo que é noturno, sem que o seja falsamente noturno como a escuridão do sol a iluminar o outro lado do universo. Tenho sede do que é noturno e solidão. Há estrelas demais para quem caminha sozinho? Não há estrelas para aqueles que olham em demasia para o sol? Ilusão de luz a ser também ignorada e que sem falar em esperanças, sem pedir que as deixe ou as tenha, nada esperando, ilumina o alto daqueles que procuram a si mesmos. Tenho, assim, sede. Um novo vir-a-ser: de que é preciso ter atravessado a angústia e a dor quase física da finitude para tornar o canto de alguém que ama, um ressoar para tudo aquilo que cria e transforma, nega e sente, chora e toca com a voz sem nos fazer sentir alegria pela falta de nossas lágrimas, diluídas em meio a tempestade, tirando de nossa pele o frio e a doença do cansaço. Que eu jamais volte a perguntar ‘para onde foram as lágrimas dos meus olhos?’ Tenho sede de desespero e a minha sede é, ainda, uma vez mais, meu grito solitário em meio aos atalhos, é, ainda, uma vez mais uma água a correr e envolver a montanha e um sucumbir em limites em que os deuses odeiam serem vistos. Tenho sede de precipício, de mais de um ano completo em seu eterno retorno, tenho sede de ser eu mesmo minha própria canção de nuvens sombrias, sem calor e sem palavras. Eis, vejo um porto reluzente em torno de minha morada. Eis, sinto a inscrição de Dante como um aviso: devo deixar, quando entrar em minha morada, toda a esperança que ainda existir. Mas levo junto, para todos os vestíbulos com seus infinitos portais e inscrições, minha própria sede de tudo que é noturno.
Quando Nietzsche termina de escrever mais uma noite chega ao fim e o sol surge em seu eterno retorno. Um novo canto soa e se espalha como a quintessência não-doadora de metafísica a substituir tais ‘esperanças’ pela sede de vida de tudo que é humano. Vira a escuridão se extinguir e dar lugar a um outro eterno retorno, não o compreendia — dos dias empurrados por palavras sem sentido. Ouve em meio a ruídos o torpor de pessoas abrindo portas de lojas, cafeterias e centenas de outras que movimentam este mundo de realidades de um jeito contrário às suas próprias emoções. Centenas destas portas se abrem para a continuidade de uma vida ao avesso enquanto ele fecha os olhos para um outro tipo de beleza. Ainda ouve Dante bater na sua porta e dar um bom dia dizendo "já não lembro do que falamos na tarde anterior, mas podemos nos encontrar para outro café, caso estejas bem disposto". Nietzsche murmura qualquer coisa "como ele pudera esquecer do que dissera? Daquilo que proporcionara a ele desespero e euforia?" Dante responde indiferente, "são só mais algumas palavras a rondarem o real e a realidade, eu próprio também sinto minha mão queimar quando toca em gelo."
Nietzsche finalmente adormece, até o próximo retorno da noite, quando finalmente despertará ‘todos os cantos dos que amam’, também seus lábios estarão sendo sentidos como lábios de gelo.
Anna K. & Uma estadia com Nietzsche
1999