24 de setembro de 2005

Teia


Uma teia pode ser construída através do entrelaçamento de fios. Os fios podem ser tecidos de amor, tristeza, ciúme, ou até mesmo, da morte. Enfim, obrigatório apenas a presença de duas pessoas e a teia, então, se faz e se desfaz. O pacto com ela pode ser perfeito, depende. Com seus frágeis fios, quase invisíveis, a tornar-me uma mulher com medo e alerta. Olho sempre se não estão a desprender-se ou sujos da poeira que vai se acumulando com o tempo, eu finjo não notar. Não podem desprender-se, um que seja, a teia se desmancharia. Não bastasse a fragilidade, precisam estar presos a algo para que se sustentem, do contrário tudo se vai. Não bastasse a sustentação é preciso a sorte de que ninguém irá arrancá-los de sua certeza de permanência. Não bastasse a certeza, é preciso que durem muito tempo e que o cuidado, também a ser vigiado, não seja menor do que a sua fragilidade. Sim, essa rede elástica e emaranhada é o meu mundo construído de forma ilusória e ingênua. As aranhas, pela sua natureza, "sentem" que a teia jamais se desmanchará. E eu, com ingenuidade trocada por esperança, choro pelo invisível, pelo frágil, pelo que se quebra sem que se ouçam os ruídos, pelo que se ama sem que se possa ver, pelo que se constrói lentamente sem que termine num sopro. Luto pela minha teia e não sei quais os fios que continuam presos uns aos outros. Luto por ela enquanto a abandono sem preocupar-me se continuará protegida e se os fios são ou não traços de meu imaginário. Terá ela forças para impedir a ruína, quando eu cismar em virar-lhe as costas? Deixar que se vigie a si própria caso queira sobreviver? Talvez ela não tenha forças de lutar quando abandonada, sim, a força da fragilidade é grande e se quebra facilmente. Há quem consiga construir sua particular teia sem viver necessariamente do que existe em seus fios. Mas todas elas continuam seu curso próprio e voltar atrás é correr o risco de não tê-la nunca mais. Preferível os fios já tecidos do que a destruição, ou tranformar-se em Penélope, a tecer e destecer um trabalho infinito onde o que resta é esperança. Não, decididamente não, que o bordado de Penélope permanecesse longe dela, não precisava da lenda grega, ‘Penélope, rainha de Itaka e mulher de Ulisses, a ser-lhe fiel durante a longa ausência, dizendo aos pretendentes que não se casaria enquanto não terminasse a feitura de uma grande tela, que tecia durante o dia e desmanchava à noite’. Isto era uma sedutora fantasia grega, mas não iria cortar a sua própria teia da vida que demorava tanto tempo para tecer. Não seria louca qual Penélope. Jamais desmancharia um fio que fosse. Chegaram em casa, a teia aumentara quase que imperceptivelmente. Mas Beatrice sabia que aumentara, sorriu em silêncio, olhou para seu amor e percebeu que a teia estava grudada na superfície e no interior de ambos. Tarde demais, perigosa, estabeleceu-se. Há que alimentar os seres que vivem nela do necessário para viver, pensou ela. Um chá de camomila, o creme dental no armário do banheiro, os pijamas sem estampa. A teia cumpriu outro dia, possui a noite pela frente. ‘Que bom tê-la entre nós’, pensou ainda Beatrice, antes de ir para o sono profundo onde a trama dos finíssimos fios seguirá cumprindo seu destino sem que ela ou ele consigam ver ao longe.

Anna K & A Teia "Vista" no Guion. Porto Alegre 1997

Jamais seria tão somente


Jamais seria uma poeta
Jamais seria uma romancista
Não escrevo tanto quanto um romancista "sobre uma mesma coisa ao mesmo tempo e sob o mesmo aspecto"
É a minha fragilidade de síntese-analítica
Não escrevo como um poeta em sua síntese-metafórica breve e suficiente
Jamais pertenceria somente ao mundo terno da linguagem suficiente.
Preferiria tocar flauta.

A poesia encanta porque envolve o leitor numa sensação etérea, a poesia passa longe da realidade, não importa o que diga, não importam as palavras usadas, a poesia em seus estranhos versos nos tira da realidade. Não tem nada de pragmático num poema, nada de prático, nada de mundo real. Por isso encanta. É simplista o que digo? Sim, mas também não importa. Passa, como a poesia, longe da realidade. Difícil explicar. Quem cria outros mundos? Soa. Encanta. E passa ao longe.

Mas então ele me olhará com olhos de poeta.
Olhos da noite irão ferir-me longamente?
13 set 98
Anna K. & Pensamentos Antigos