6 de outubro de 2005

O "mais" longo verão fitzgeraldiano


Vejo algumas pessoas andando e outras sentadas na praça em frente ao prédio onde moro, permanecem por algum tempo e depois se vão. Vejo alguns bêbados na esquina, conversam sobre assuntos diversos em voz alta e descontrolada. Vejo um rapaz vestido esquisitamente-trash, ele caminha em direção a um dos bancos da praça e se senta enquanto outro vem até ele e o cumprimenta, de forma rápida um envelope é repassado, os dois se afastam em seguida pelo mesmo caminho feito até ali. Vejo uma mendiga com roupas de inverno numa noite ainda de verão, ela circula pelos dois lados da avenida e pela praça como se o mundo contivesse somente este limite, como se ela não tivesse mais noção de espacialidade ou ainda como se não fizesse diferença ir para esquerda, para a direita ou dar voltas no mesmo lugar, como se fosse realmente o único que restara no mundo. Wittgenstein, disse, de forma brilhante, "os limites do nosso mundo são os limites de nossa linguagem", lembrei disso quando vi a cena da mendiga tentando defender um pacote, encontrado no lixo, de outro habitante de rua, o resultado foi que o habitante de rua irou-se com ela e com um movimento violento arremessou o embrulho fazendo o conteúdo espalhar-se pelo chão, ele vai, então, embora, enquanto a mendiga fica olhando para o que sobrou do pacote como se não acreditasse que fora roubado de suas mãos e agora estava ali, inutilizado. De repente, sentindo-se observada, olha para cima e vê que eu a observo, permanece olhando fixamente para mim. Sua atenção se desvia para um senhor, talvez também tivesse presenciado o ato de crueldade e caminhara em sua direção, pára e dá a ela algumas moedas. Ela as pega. Ele se vira e continua a andar. Ela olha para as moedas, torna a olhar para mim, coloca-as no bolso, torna a olhar para o chão e ergue novamente os olhos para a sacada onde estou. Então, eu entro e fecho a porta. Sempre que vejo uma cena dessas fico com vontade de ir até onde a pessoa está para conversar e saber como a sua vida chegou ao que é, pensei em descer para conversar. Mas não o fiz. Apenas entrei e fechei a porta. Será que é a loucura que faz algumas pessoas adquirirem um tipo de vida sem rumo? Ou será que é a própria miséria que após não apontar outro caminho, acaba tirando a lucidez? Em qualquer um dos casos a dor não está ausente. Isso é suportável para um ser humano? Do meu ponto de vista, daqui, de onde observo, não considero de forma alguma suportável. Outras pessoas circulam. Pego novamente O grande Gatsby de F. Scott Fitzgerald, lembro de Zelda, sua esposa, lembro do jovem rapaz de rosto quadrado que numa noite de autógrafos ficou um longo tempo parado em pé com um livro entre as mãos e olhando para mim de longe com um meio sorriso entre os lábios. Lembro dele nessa noite, fitzgeraldiana em vários sentidos, de ter se aproximado e estendido o livro de Fitzgerald, Suave é a Noite, para que eu escrevesse algo ali, pois além dele não ter outro livro em mãos eu lembrara a ele, Zelda, fora a explicação que eu ouvira naquela noite, hoje, sei que Zelda inspira uma lembrança de certa falta de lucidez. O jovem adorador de Fitzgerald era suave, seu livro trazia no título a suavidade e a noite. Lembro de haver falado inicialmente de Wittgenstein e da mendiga, pois os movimentos andarilhos dela em um espaço tão pequeno fizeram com que eu pensasse sobre os limites de um mundo apenas em relação ao espaço_aparentemente físico_ escolhido por ela para andarilhar à noite. A sua linguagem não-falada determinara o limite deste mundo?, seria preciso perguntar a ela. Como faria isso? Resolvo descer. Desço com O grande Gatsby entre as mãos. Sento-me ao seu lado, saudei-a com uma “boa madrugada” e abri o livro, imediatamente li a passagem de uma das descrições mais belas sobre um sorriso já dado:
“Sorriu compreensivamente_ muito mais do que compreensivamente. Era um desses sorrisos raros que têm em si algo de segurança eterna, um desses sorrisos com que a gente talvez se depare quatro ou cinco vezes na vida. Um sorriso que, por um momento, encarava_ ou parecia encarar_ todo o mundo eterno, e que depois se concentrava na gente com irresistível expressão de parcialidade a nosso favor. Um sorriso que compreendia a gente até o ponto em que a gente queria ser compreendido, que acreditava na gente como gostaríamos de acreditar, assegurando-nos que tinha da gente exatamente a impressão que a gente, na melhor das hipóteses, esperava causar.”

A senhora de idade avançada, magra e triste, não sorriu quando acabei de ler a passagem, olhou para o céu, murmurou algo incompreensível, permaneceu olhando para cima. Não quis contar sua história para uma mulher estranha que aparecera do nada, isso me fez refletir que uma parte dos seres humanos, onde quer que possam estar e em que circunstâncias estejam vivendo, possuem uma espécie de comoção para com seu próprio passado, para com a história de sua vida e, mesmo que fosse uma habitante de rua, ela não me contaria sua vida sem que antes eu lhe mostrasse que poderia confiar em mim. Então, eu me levantei, dei a ela uma caixa de bombons e estendi junto o O grande Gatsby_ ainda que não o tivesse terminado de ler. Talvez ela soubesse ler, talvez tivesse esquecido disso, talvez outra pessoa pudesse ler outra passagem em uma noite que se seguiria semelhante àquela. Dei alguns passos, virei-me para trás movida pelo impulso em saber o que ela faria com Gatsby, e percebi o movimento de suas mãos levando o livro junto ao coração, segurando-o firmemente olhou-me um pouco de lado 'sorrindo' de um jeito meio incerto. Fora um desses raros sorrisos fitzgeraldianos,
"com que a gente talvez se depare quatro ou cinco vezes na vida."

Preciso comprar outro exemplar de O grande Gatsby. Desejo lê-lo antes que o verão mais longo termine.

Anna K. & Suave é a Noite 3 de abril_2005
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