30 de setembro de 2005

O reencontro com o não-filósofo

Rimbaud disse que 'sua vida fora, outrora, regada por todos os vinhos, aberta a todos os corações, sua vida fora um festim. Mas, um dia sentou a Beleza em seu colo e a achou amarga, injuriou-a e contra a justiça armou-se. Cheguei a dissipar de meu espírito o último traço de esperança humana. Num salto surdo de animal feroz pulei sobre cada alegria para estrangulá-la. Fiz da desgraça um deus. E andei pregando peças à loucura... sonhei reencontrar a chave do festim antigo. A chave se chama caridade. Essa inspiração é prova que sonhei.' Existências regadas por todos os vinhos e abertas a todos os corações; o primeiro ato: sentar a Beleza no coração; o segundo: armar-se contra si; a arma para isto se chama ceticismo. Para aniquilar a Beleza é preciso antes ter conseguido sufocar e devastar uma a uma todas as alegrias, é preciso ter se tornado um animal feroz para si mesmo para fazer das tristezas um deus particular e dessa inspiração retirar e exterminar esperanças e sonhos. Em meio a tudo isso, um cálice entre os dedos seria desejar cinicamente fazer da felicidade um deus cheio de máscaras, um deus revestido de mentiras. Para descobrir a chave que mantém o brilho do olhar é preciso sonhar sem estrangular, esperar sem provar, beber do cálice do vinho sem receios, a Beleza não volta a se sentar no colo de quem fala sobre a vida, mas que se arma contra ela. Quando o vi novamente eu ainda não havia voltado a tomar champanhe. Fiquei olhando para aquele jeito displicente que só as pessoas com o dom de amar a vida possuem. Senti vontade de ver se o brilho daquele olhar profundo iria aumentar, se o seu toque na minha pele iria provocar mais que calafrios, se o seu rosto enigmático teria algo de filósofo sem o risco de cair na opacidade de um estranho mundo que fala sobre a vida, mas não a vive ou a vive inversamente. Senti vontade de amá-lo, algo nele lhe dera uma certeza, uma apenas, de que a Beleza um dia sentara-se em seu colo e lá permanecera. Esse pensamento acabou por dissipar a imagem do cálice entre minhas mãos, era a minha prova; a prova de que a inspiração rimbaudiana cabia ainda e também a mim. Voltei para as cafeterias e fumaças variadas de cigarros e cachimbos, não sem o sentimento de não ter resgatado o já perdido, porém, agora, sempre que peço uma taça de café ressoa em meus devaneios a musicalidade de Poe: c’est ça et rien de plus?
Anna & e o Reencontro com o Não-Filósofo & uma passagem rimbaudiana de Une saison en enfer