21 de setembro de 2005

Fragmentos de um manuscrito & outros delírios



Fragmento 1.
Quando o amor acaba?
Na madrugada, acaba na madrugada.

1998_1999_ Anna K.

Fragmento 2.
Paradoxal, há uma madrugada em que se pode sentir, olhar para o outro é como se reconhecer em todas as águas sem se ter pisado em outras areias, sem ter visto se as estrelas que o outro via à noite eram também as nossas, fazendo surgir em nossa imaginação lugares secretos e sedutores. Lugares que nos trariam de volta o fluir de uma imagem: encontrar no mesmo olhar os espaços e tempos desconhecidos um dia revelados.
Um dia isso morre dentro de nós e não sabemos a razão.

Fragmento 3. O ainda querer-saber
Coragem. Medo. Guerra. Há alguém sempre de guarda contra seus exércitos interiores? Apreensivo sem saber o que eles estão planejando? A dar-se conta apenas quando uma nova guerra inicia? Sem saber de que lado ficar? Então pensa-se: um deles precisa ir embora, precisa, uma longa e cansativa guerra que nos faz oscilar entre amor-ódio, luz-trevas, saúde-doença, noite-dia, tristeza-alegria, calma-turbulência, areias-ondas, terra-céu, navegar-andar. Talvez, conhecer uma alma guerreira, destruísse o que precisasse ser destruído e salvasse o que precisasse ser salvo. Mas a guerra continua.
Exércitos vivem ainda dentro do coração?
Defesas ensinadas lutarão ainda entre si?
Eu gostaria de saber
porque um homem de alma nobre
permite que exércitos ainda o habitem.
Confiar em sua coragem e em sua fraqueza? Eu gostaria muito de saber.


Fragmento 4
Um quadro de paixão e simplesmente um dia vemos escrito ‘the end’. Deveria haver uma poção mágica que pudesse manter o amor de duas pessoas por toda uma vida, isso seria maravilhoso. Tão estranho, num dia morreríamos por alguém, no outro não. Como pode tal coisa num sentimento que deveria ser uma exceção? Talvez aí o erro, por pensarmos que é algo especial queremos que tudo que o envolve seja também especial. "O lugar mais escuro é sempre debaixo da lâmpada". Quando vivemos algo em existência não conseguimos vivê-lo ao mesmo tempo em essência, acabamos por nos perder, queremos juntar as duas coisas, mas a luz da lâmpada nos cega.

Fragmento 5
Mas, ainda não. As divagações privadas soam hoje como exércitos a incomodar: a racionalidade me "olha" estranhamente, um olhar cínico; o tempo, diz que isso já não faz mais sentido; o espaço, que algumas coisas são quase impossíveis e que as moiras gostam de aí permanecer: no espaço, pois é daí que elas tiram sua força e seu poder sobre nós.

Fragmento 6
Falta algo para deixar a vida mais densa, talvez a guerra vivida longe de nós mesmos. Eu preciso soltar minha "alma guerreira". Talvez você também. Eu lembro quando você dizia: 'mas não queria te dizer nada disso, pois é meio filosofia e filosofia me parece meia-guerra, um certo medo.' Shakespeare disse, onde crescem os amores crescem os medos. Onde o medo cresce, cresce o amor? A filosofia faz meu amor crescer na mesma proporção que o medo, medo de sucumbir à vida, só o que me dá forças é saber que vou sentir você e toda sua sedução em meus lábios. Sinto falta de suas mãos apertando minha cintura e me levando até onde você está, você me salva do medo, mas não do amor. Shakespeare estava errado.
[...]

Fragmento 19.
Os hinos que me embalaram a estar só provinham de uma única voz, de um mesmo apelo, de um só lugar. Rendia-me a eles ‘every day’; a eles, só a eles e ao seu balanço de choro contido, como se da esperança sobrasse um sussurro, ainda uma palavra, também dos hinos. Era assim. Então, e nada mais, era assim. Por que estar só é como chover sobre uma cidade em ruínas. Mas não é tudo, quando somente a metade é que se faz estar. Tudo, que é metade. Nada há que terminar. No meio se desiste? Ou depois da primeira vitória, quando se foge covardemente? Hoje, só o que ele faz me preocupa, um quê de algo sempre escondido. Pensamentos a trabalharem sem parar em busca do que se ocultou por detrás de tantos ‘quês’. Se, ao menos, o que ele sente, corresse por alguns segundos nas minhas veias, eu teria certeza que sente o que eu gostaria que sentisse, para sempre, ‘everyday’, e eu não precisaria mais render-me aos hinos. Ou a mim.
Fragmento 20.
Não sou o que se pode chamar de mulher forte. Às vezes, me vejo como um ser beirando o precipício da vulnerabilidade. Corre dentro de mim, num lugar sem nome, uma vulnerabilidade difusa que parece destruir-me lentamente, sempre a diminuir o passo a ser dado, a aumentar a fragilidade que quero esconder. E não serei mais do que isso. Quero a força para defender-me de quê? Eu, afinal, não preciso de defesas. Quem dera isso importasse e a in-verdade da força que ambiciono não fizesse parte de minha natureza. Que natureza? Força? Sim, e a fragilidade da in-verdade nas profundezas do mal que me cerca.
Fragmento 21.
Estou cansada de grandes idéias a serem narradas, quando no mundo, tudo já foi dito. Estou cansada de escrever sempre o mesmo, quando na alma reza-se pelo não dito. Entre o cansaço de tudo isso, carrego no corpo o dito e o escrito, o mal e o bem, e o nada que sempre fito. Fragmento 22. Digo que o outono nasce, enquanto o verão está a surgir, porque gosto do outono. Minto que nasce, para mim então é isso. Nasce o outono. Nasce a insônia entre o ciclo constante da inconstância que sou. Velhas páginas decoradas já não preenchem meu vazio. Elas mudaram com o tempo? Tudo me é fraco e sem sentido. Tudo serve para alguém. Fernando Pessoa aquece meu frio no verão que chamo de outono. Ele, que descobriu a verdadeira metafísica, tem sua lápide nos claustros do grande mosteiro. Ele, que a tantos dá sentido, rodeou-se da esterilidade do espaço. Respire ao lado de seu túmulo e sentirá o ar insípido. No entanto, rezei a ele, em pé, por um caminho que possa libertar-me ou conduzir-me em definitivo ao caos que quero viver. Expressão de tristeza pessoana? Mas tenho ouvido muitos reclamarem que desde que Pessoa se foi muita coisa passou a sumir da terra e que todos nascem tão iguais que ele faz realmente muita falta. Quisera eu também ser feliz no mundo em que acredito. Saudades de alguém que não conheci.
Fragmento 23.
Só pode restar um tipo de consciência, a de que tudo é possível a qualquer momento e seu inverso também é verdadeiro: diante da possibilidade de acontecer existe a não-possibilidade de que aconteça, se nós depositarmos aí uma falsa angústia. Nascer uma vez mais para a impossibilidade de algo diante das inúmeras possibilidades que o mundo nos abre e que não são exatamente aquelas que queremos vivenciar. A angústia nasce da impotência de que não se pode contrariar o destino que nos cabe. Qual destino?
Fragmento 24.
Não pretendo evocar o passado, apenas bater em sua porta amarelada e de pintura envelhecida.
Fragmento 25.
Emoções que nem todos sentem. Alguns vêm ao mundo com um breviário em que constam sete ou onze diferentes tipos de emoções a serem utilizadas durante toda a sua existência. Uma espécie de cota de afetividade. Acredito que os depressivos trazem, nesse breviário, algumas coisas que os não-depressivos desconhecem. Torna-se difícil para aqueles que não sabem o que é a depressão entender a emoção daqueles que não conseguem se livrar dela. Sinto pena dos não-deprimidos, falta-lhes algo para compreender a essência do mundo.
Fragmento 26. Todos os meus desesperos têm uma data marcada: amanhã. Meus sonhos esvaziaram-se. Minha alma também. O que posso esperar de um sossego tão intenso? Sinto dor física no abdômen. É bom saber de onde vem a dor e que ela vai passar, vai passar. A outra, não passa nunca e não sei de onde vem, e assim continuo os meus dias. O dia hoje está parado, parece que as pessoas o esqueceram, o mundo morreu e eu não vi. Os outros viram.


Fragmento 31. Como é bom dialogar em sonhos com pessoas que nunca vimos
Sonhei com as partituras de uma música melancólica como se fosse o Requiem de Mozart, às vésperas da tristeza certa. Depois, esta música transformou-se em Carmina Burana, a misturar-se com um conto, e novamente as partituras. Perguntou-me o que eu pensava do conto da tristeza que ali estava. Eu disse que, caso tivesse sido eu a escrevê-lo, tentaria explicar as sensações de quando começara a intercalar partituras com palavras. Sim, faltava algo, talvez a verdadeira transição dos sentimentos para as palavras. Das palavras para a música. E da música para as vésperas da tristeza certa?

Anna & o Escritor Desconhecido dos Sonhos
[...] Fragmento 109 [...]
1997