18 de setembro de 2005

Sem tempo

Junto ao relógio está presa uma corrente de prata a suspender em sua outra extremidade uma cruz. É a cruz ansata, símbolo dos deuses egípcios e da eternidade. O relógio preso à cruz pela corrente contrasta. Não pelo ser-relógio ou pelo ser-cruz. Vai além. O relógio, o tempo que convencionou-se para viver a partir do calendário egípcio. Tempo terrestre, sensível, repleto de ilusões. Tempo de acontecimentos. Também tempo de vida. Contraditório: relógio, tempo limitado. Cruz ansata, tempo infinito. Dois tempos ligados por uma corrente que nada tem a ver com histórias de tempos. Algo de polaridade. Algo de Goethe. Os dois tempos existem para que um só seja formado? Se for, este ‘um só’, o todo, é tão espicaçado pelo mundo que se torna difícil senti-lo por todos os instantes. Doloroso senti-lo. Melhor não. Não esquecer que o relógio depositado em cima do móvel de madeira e esquecido no canto da sala, é apenas funcional. De compromissos. Nada tem a ver com o tempo que fica para trás ou com o tempo que ainda está por vir. É claro, mesmo sem saber, compactua com a eternidade. Os ponteiros finos, de prata antiga, farão novamente a circular volta viciada para dizer, os fragmentos do tempo decorrido serão contados de novo, da mesma forma fragmentada, para o tempo não decorrido. Não é só isto. Pequeno. Escravista. Aprisiona vidas no seu som linear. Não é estranho, ou melhor, paradoxal? Seu movimento é circular, seu som é linear e, no entanto, nos movimentamos através de algo - o tempo - sem termos certeza do que seja e se também possui seu próprio tempo & espaço.
Anna Karenina & Antigos Escritos
1997