27 de setembro de 2005

A Velha de Belas Faces

Já amaste uma mulher assim?, fora a pergunta que eu ouvira da Velha de Belas Faces. Muitos já devem ter ouvido de alguém, algum dia, seja num lento murmurar, seja por lembranças de rendas brancas a cair por sobre suas mãos ao ouvir a mesma pergunta. O que eu poderia ter respondido? Limitei a centrar minha atenção na pele escurecida, a contrastar com os seus cabelos brancos, acompanhado da impressão de que só seus olhos ainda viviam. Observei, ainda, o corpo movimentar-se devagar, exalando o cheiro forte e próprio da velhice, só e tão somente da velhice, odor que existe para lembrar que a morte encontra-se bem próxima. Nunca conseguira definir o cheiro característico dos velhos, as minhas sensações?, bem, apenas se recusavam a compreender o por quê do nosso corpo tornar-se lúgubre também nisso. Percebi, então, que a delicadeza que eu supunha existir na minha imaginação e que eu esperava inocentemente salvar, transformara-se dentro de mim em algo rude, primitivo, quase subumano. Como, ainda, ser o mesmo?

A Velha esperava uma resposta. Uma antiga cadeira, uma cortina acinzentada, uma pequena mesa redonda, sim, ela esperava uma resposta. Eu nada tinha para dizer-lhe, meu desespero estampado na face e o amor que eu sentia por uma jovem, uma mulher, era tudo o que eu possuía. Não queria responder, sequer continuar olhando para a Velha de Belas Faces. Pensei na razão de ter procurado alguém que eu desconhecia. Acabei por falar algumas frases soltas, sim, é claro, já amara com tal intensidade. Ela deixara escapar um riso que só pertence àquelas pessoas que muito já sabem sobre a vida, sobre a dor e que não mais poderia se permitir o espantar-se com a aflição exagerada que eu, também, talvez como muitos que outrora já haviam estado naquela sala, tentara, em vão, conter. ‘O que sentes acabará por destruir-te, meu jovem, até que não queira mais viver.’ Suas palavras cruéis fizeram com que eu lembrasse da primeira vez que vira Soila, sentira meu abdômen gelar como se a presença dela despertasse uma estranha dor física. Soila vivia como se suas verdades não se encaixassem para o resto das pessoas a não ser para si própria. E, no entanto, eu não conseguia impedir-me de senti-la. Nunca a tivera realmente. Era apenas levado para longe pelos seus dedos suaves quando tocavam-me a face, um sutil impulso que acabava por me confundir. Eu fingia não ser assim, mas como um menino solitário, a usar sempre o mesmo disfarce de castelo fortificado, eu compadecia-me de mim próprio, enquanto ela continuava, naturalmente, a acariciar o meu rosto. Assim, eu resolvera escrever com letras enormes em minha memória, qualquer coisa para eternizar o que o amor estava a representar para mim, dentro de meu mundo venenoso e cheio de promessas vãs.

Em todo meu desânimo e lentidão de existir, senti-me pior do que qualquer momento que pudesse recordar, porque sempre a dor do presente é maior do que qualquer outra já vivida, parecia ser o preço de se estar vivo. Quisera ter ouvido palavras que me incentivassem a lutar por Soila e por mim mesmo. Quem sabe a Velha de Belas Faces tivesse se equivocado?, não, não faria nenhuma diferença, já escutara suas palavras e, embora ela pudesse ter se enganado, não conseguira voltar ao significado original do que sentia. Não seria melhor morrer antes de tudo?, ou seria tão covarde assim, ou não?

No outro extremo da cidade, uma bela jovem, rodopiava pela sala, dando voltas e mais voltas. Sabia que o meu amor pertencia a ela acima de qualquer coisa. Sabia disso sem nunca ter tido certezas em sua vida. Soila não se importava com fatalidades. ‘Todos temos uma, muito bem guardada para surgir quando menos estamos a esperar, no momento a minha está a me fazer feliz, o que já vale qualquer coisa ainda não revelada, Augusto.’ Dissera, além disso, que não iria procurar significados obscuros, quem sabe inexistentes, apenas porque não conseguia ver por onde ir. Eu suara frio durante toda aquela noite, sim, sonhos confusos entraram dentro do meu corpo perturbando-me por várias noites. Eram sonhos protegidos pela memória de minhas sensações, nada pude fazer contra eles. No sofá, deixei-me ficar. Permanecer assim talvez fosse melhor do que viver e aquela dor esquisita, que sempre me derrubava em meio a lençóis e idéias absurdas, fez com que eu pensasse que sumir em um breve estado de inconsciência poderia salvar-me de sumir para sempre.

Não estivera a depositar em Soila a miséria do que tinha sido meus dias?, sim, meus dias diante de Clara, a verdadeira esposa, a quem eu já amara por tantos anos, um outro tipo de amor, mas não menos verdadeiro. Prostrada na cama, Clara não era mais uma mulher. Moribunda há tanto tempo. Eu, também, de uma outra maneira, encontrava-me moribundo em minha própria miserabilidade. Convivera com a morte, que hesitara em aparecer, dia após dia, arrastando a pobre Clara num sofrimento sem fim e eu a culpar-me por não amá-la quando ela mais precisara. Tudo é tão vago, as coisas vem e vão em momentos imprecisos, a vida se mostra cruel quando mais queremos viver. A culpa é que acabara por me destruir? Apenas, eu fora fiel ao que sentira, tantos já haviam tido este direito que naquela época eu acabara por pensar que talvez tivesse chegado a minha vez. Era terrível, além do mais, viver sem paixão.

Passeávamos juntos como pessoas com aparência de normalidade simplesmente por passearem juntas. Como custava ao meu ser este parecer normal, quando a normalidade era o princípio do meu mal-estar. A última tarde em que estivera com Soila, ela rompera o silêncio ao falar sobre a Teogonia de Hesíodo que estava a ler. Lembro de ter dito a ela que Hesíodo vivia para os deuses e que não vivíamos para ‘deuses’, mas para nós mesmos. Juntei as mãos dela contra as minhas em um toque desesperado, que em silêncio eu perguntara: como ela podia falar sobre a Teogonia diante do pouco que poderíamos viver? Acusara-me de ignorar e desprezar o que fazia parte de seu mundo. Eu fora bastante insensível, pois Hesíodo, naquele exato instante, jamais poderia ter me ajudado, a origem dos deuses não era a origem do que eu sentia por ela. Caminhamos mais um tempo em silêncio e o som das botas de Soila nos pedregulhos, soara a mim como uma contagem de minutos, minutos que não significavam o que eram para o resto da humanidade, não naquela hora, para mim era o tempo que ainda ficaríamos juntos. Mas, a questão já não era Hesíodo. A minha sensibilidade nunca iria mudar, pois, na verdade, eu pedira desculpas pela minha própria in-sensibilidade. O que haveria de errado com ela? O que Soila queria que eu tivesse pensado? Ou feito? ‘É provável que tudo vá muito além de sensibilidades e emoções que nos tiram toda a lucidez de que precisamos para viver’, ainda ouvira ela dizer, e eu, que buscava ser tão confortável em minha própria existência, decepcionado, entristeci-me continuamente com meus pensamentos. Enfim, o que era agir sempre sem nenhuma diferença? Será que não era o mesmo que morrer sem saber que morremos?

Não importava que eu não mais a visse, pois eu fazia parte daquele velho bairro suburbano, por onde nos encontráramos tantas vezes, muito mais do que em qualquer outro lugar que já estivera. As casas velhas de dois andares, quase sem pintura, ruas estreitas com entradas e saídas formando labirintos úmidos e sujos, que não combinavam em nada com deuses e coisas desse tipo, fizeram com que eu pensasse que se tivéssemos falado de Edgar Allan Poe, e recitado o ‘Corvo’, acabaríamos por envolver nossas vidas na musicalidade certa de versos e melancólicas sombras, como era o nosso amor. Isto fez com que eu perguntasse para mim próprio: como um amor poderia sobreviver somente a isto, a um lugar em que as frases, por mais fortes que pudessem ser, não gerariam jamais um tempo de sonhar?

O que é, então, a vida para os outros que continuam enterrados em suas próprias existências?, quando somos nós mesmos enterrados nas nossas? Desagradável, nada mais aconteceria em minha vida? Quis tapar parte do meu rosto, que às vezes, suava muito e se tornava pegajoso; outras vezes sentia frio como se ocultasse uma geleira e eram nestes instantes que eu percebia o quanto a busca de um conforto existencial se apegara à minha pele, talvez à minha alma, reproduzindo angústias que eu tentava manter por debaixo de alguma coisa que eu julgava ser suave, mas que se transformava em uma tristeza sólida e contida. Queria uma outra dor, aquela dor que se espalha pelo universo através do movimento de pessoas que nada exigem de seus pensamentos, quisera esta dor só pelo prazer de ter algo que ultrapassasse os limites do meu desespero, para me sentir como se andasse pelas ruas, como se, ainda, fizesse parte do mundo sem que eu precisasse estar diluído dentro dele. Ou dentro de meu próprio desespero. Soila se fora.

Imaginava, que um dia eu veria o tecido de minhas roupas gasto pelo tempo. Mas o que eu conseguira, também, desgastar fora a minha esperança, concedera-me um olhar que parecia existir sozinho, sem que meu corpo tivesse ainda alguma importância. Meu olhar passara a carregar o corpo. Rápido pela calçada, eu pensava em Soila. Pensava em Clara estendida na cama, no seu banho, no jantar e na conversa que se tornara árida, acompanhada da pergunta oculta que havíamos acostumado a ignorar: quando chegaria o dia em que eu entraria no quarto e ela não mais estaria lá? Ela via nos meus olhos um apelo sem resposta, um olhar sem brilho e o ar de quem se despede, sem que possa despedir-se. Um pouco úmido. Embaçado. Definitivo. Há quem preferisse o nada à dor, sempre há. Mas não tinha mais importância, estava começando a não ter mais as certezas do que pensava.

Caminhei sem cessar e sem rumo durante meses. Naquela noite caíra uma garoa fina e desagradável. Não podia viver o amor, precisava destruí-lo. Lembrei-me da Velha de Belas Faces... ‘o que sentes vai acabar por destruir-te, meu jovem’. Ela quase acertara. O que precisava fazer era destruir o que eu sentia, só isso, somente isso, tão simples e tão perto do possível. Encostei-me na parede de uma das casas do subúrbio por onde Soila e eu muitas vezes tínhamos passado, agora completamente molhado pela garoa que se transformara em forte chuva, com uma única vontade, ficar ali até que algo que ainda não se mostrara para mim, surgisse para arrancar-me das certezas que esburacavam minha alma. Clara estava morrendo. Maldita doença degenerativa, espalhada por todo o corpo. Andando ainda pelas ruas do subúrbio, eu sabia, não restava mais nada, só o amor por Soila e que precisava expulsar de dentro de mim. O que fiz de minha vida? O que fiz foi quase nada, dilui minhas emoções e contentei-me com isto. Minha vida extinguira-se de um momento para outro, não havia nada a ser feito.

Quando amanheceu e como eu não voltara para atender Clara, pois passara a noite inteira perambulando pelas ruas da cidade, ao chegar em casa encontrei-a dormindo, um sono pesado. Observara alguns minutos e, como ela não se mexesse, saíra do quarto. ‘Bom que ela estivesse dormindo como há muito tempo não a via fazer, não iria perceber que nem ao menos a beijei na face como de costume, que não a toquei, o quanto me esforçava por dar-lhe ainda um carinho, acabava por sentir uma culpa maior ainda. Mas ela talvez estivesse mais viva do que eu próprio.’ Sim, pensara isto e ela nem ao menos ainda estava realmente ao meu lado. Não foram minhas últimas palavras para ela, foram meus últimos pensamentos.

Hoje, só tenho uma certeza: a de que o amor não vivido só serve para nos destruir por dentro. Então, depois de estar só, totalmente só, penso em Camus, ‘suicidar-se ou não’, talvez já tivesse feito isto há muito tempo, porém continuava vivo, era uma estranha forma de morrer, diferente do que fora a morte para Clara. Pego, então, o copo de uísque, olho através das cortinas e percebo que há dias não saio do meu quarto. Nunca mais voltara na Velha de Belas Faces. Nunca mais vira Soila. Uma vida repleta de nãos. O que pode restar, ainda? O tempo, sim, é o que me resta. Mas, o que é isso, o tempo? O mesmo tempo que me envelhece, que enche minha face de rugas e deixa meu corpo impregnado do cheiro da velhice, é também aquele que está sempre por chegar, insistindo em construir novos sentimentos, só para que possa ter o que esquecer mais tarde. ‘De que modo poderia diminuir ou aumentar um futuro que ainda não existia?’ O que fazer com o passado que aumenta, se ‘na alma existem as três coisas, presente, passado e futuro?’ Esperaria o futuro, não sem a dor, que só o tempo que brinca com rugas, cheiros e tristezas, consegue impregnar na nossa alma. Ou, quem sabe, esperaria agora só pelo passado que minhas lembranças e meu imaginário podem, ainda, transformar em qualquer coisa que não seja simplesmente a ‘delicadeza de imaginação’ que não soube ter, porque não nasci para tê-la, porque não nasci para ‘deuses’. Volto, então, para a teogonia que construi, porque não soube ver quando alguém olhou para mim com os olhos de quem encontra um homem com alma. Porém, posso dizer, já não mais a tenho.
Anna Karenina & A Velha de Belas Faces
Conto publicado na Antologia Livro das Mulheres