10 de setembro de 2005

Cindy_ versão pensamento


Cindy
trompe le charm ou toujour passé
Cindy fora uma versão cult-decadente da boa e velha Cinderela dos Irmãos Grimm, transformava-se após à meia-noite de forma incomum. Nada pegara emprestado dos Irmãos Grimm, nascera sedutora às avessas, era o problema de Cindy.. Depois de muitas horas noturnas de grande empenho sedutor ela começava a escorrer, pingar, secar, gelar, quebrar, ela se dissipava. Dançava de forma tão bela dentro de si mesma e de suas fantasias insanas, o baile da meia-noite, para depois converter seus movimentos, antes de fadismo, em gestos de alma-guerreira. Nada encantadores. Sua carruagem feita de palavras se desmanchava ao tropeço de pedras e galhos e na noite escura ela chorava por uma imagem que não conseguia manter, choro calado para não ser perturbada, detestava choro compulsivo, fazia surgir no olhar das pessoas um tumulto de desagrado e reprovação. Choro calado, quem há de testemunhar?
Narremos aqui a principal conseqüência do último baile dessa cinderela invertida.

Sedução estabelecida
Ela: tenta continuar se encontrando nos jogos de sedução que conhece, mas já não consegue se manter dentro do tempo. Ele: perde-se entre as cenas e vestígios sedutores de Cindy. Morreria por ela.

Sedução corrompida
Ela: começa a murchar. Ela se cala. Fica apática. Ele: procura, procura e não mais vê a mulher pela qual se apaixonou. Prefere ficar, um dia ela volta. Prefere não desistir, se ela volta e ele não está?

Sedução inexistente
Ele: não vai embora. Homens são mais persistentes e não gostam de abandonar o lar. Ela: deprime-se, seu espaço dividido torna-se sem atrativos. Anda descalça. Anda calada. Anda como Gata Borralheira às avessas do corpo para o pensamento.

Sedução na linguagem
Ela pensa: encontrei um homem sofista, se não vai embora é sofista e quer ser vencedor. Ele pensa: o que faz uma pseudo-sedutora diante de um sofista?

Sedução no bosque
Ele: passeia no bosque. Ela: vira as noites fumando e olhando para o céu e as estrelas. Eles: encontram-se de vez em quando pelos corredores da grande casa. Toca Flávio Guimarães e o princípio de euforia logo se converte em essência de solidão. Ela é Blues, ele murmura je ne sais pas.

Sedução estrangeira
Bom dia ou boa noite soam como artifícios de duas pessoas que falam a mesma língua, nada mais tendo a dizer preferem palavras estrangeiras: ça va, bon soir, au revoir. Hóspedes eventuais, as palavras e os sentimentos. Nenhum dos dois parte.

Sedução e silêncio
"A ausência seduz" ou se estabelece no lugar do outro. Uma palavra substitui o corpo do outro? Como estabelecer uma relação com a ausência?

O fechar de olhos
Ele: caminha pela casa. Ela: fecha os olhos para não vê-lo. Finge meditar. Lembra do baile.

A música para espantar o silêncio
Ela coloca Pink Floyd a todo volume há alguém em casa? responde, por favor, se pode me ouvir. Há alguém aí? Ele: toma dois lexotans e vai para a cama. Ela espalha perfume pelo quarto e reza para ele dormir muito tempo. Ele reza para continuar cético. Começa a enjoar o perfume dela, Poison.

Leituras diversas
Ela volta a ler Platão. Ele continue lendo Nietzsche. Ela vê que ele lê Humano, Demasiado Humano. Ela então tem certeza: ele é humano demais, ele a enjoa, ele é comum. Ele é humano. Ele vê o volume do Banquete sobre a poltrona_ somente dela_ e pensa: nem o mestre do erotismo sutil e refinado poderá fazer meu olhar voltar a ver Cindy com toda a sedução que senti inicialmente. Narcísica psicótica.

Parágrafos em off
Ela: gastando minha sedução com um mortal, humano, anda, como e bebe, demasiado humano, hóspede permanente na cozinha, no banheiro e na cama. Tédio. Ele: eu que me deixei enganar pelas metáforas dela. Ficção. Hades. Simulacros. Eles: alma disfarçada de Cindy, corpo envelhecido de Eduardo.

Platão versus Nietzsche
Ela lê: o único fim que justifica os meios é o amor, no amor vale qualquer coisa. Ele lê: há sempre uma certa loucura no amor. Mas há, também, sempre uma certa razão na loucura.

Ficção lida contrária às expectativas reais
Ela: ainda sente vontade que ele a puxe pela cintura e a ame no tapete da sala de um jeito selvagem, com suor, calor e paixão. Ele: ainda quer ouvir que ela o ama com toda sua alma, sussurros e simulacros de promessas e poesias.

O amor, enfim, fim
Ela: pega a mala e não parte. Ele: não pega a mala e parte. Eles: atrapalham-se com os verbos ir e ficar.

O depois
Ela: chora. Ele: lamenta.

O depois-do-depois
Ela: vira uma misantropa cult-decadente e vai morar no alto da montanha – com um exemplar de Assim Falou Zaratustra embaixo do braço. Ele: vira neoplatônico e forma um grupo de estudos filosóficos para desvendar o eros de Platão.

O antes do neo-alguma-coisa
Ela: fica por trinta anos em sua misantropia até se cansar de si mesma. Ele: descobre que o eros de Platão é complicado e resolve subir à Montanha. Eles: encontram-se na metade do caminho, ela desce, ele sobe_deveriam ambos terem lido Heráclito e seus opostos.

O neo-fim
Um imaginário com passado torna qualquer coisa e qualquer mundo menos tedioso que romances vividos ao avesso com sensações, também, invertidas.

Para ela, amar significa trompe de charm.
Para ele, amar tem seu destino, toujour passé.

[1] Quebrar o encanto. [2] Sempre passado.

Anna K. & A Cruel Realidade de uma mesma Paixão_Dividida: A Filosofia