7 de outubro de 2005

O champanhe rosa no gelo

Adoro hotéis, também por comodidade. Amo a música Hotel Califórnia. Talvez a desejasse antes mesmo de conhecê-la. Quem poderá saber se não amamos aquilo que vem ao encontro de nossos desejos já tão antigos? Quem poderá saber se não amamos aquelas coisas já esperadas? Quem sabe, há quanto tempo? Se determinado encontro ocorresse, por exemplo, há dez anos atrás eu teria tido momentos de verdadeira felicidade, mas hoje talvez não passasse de um pensamento rápido: o acaso traz consigo a vaidade. Acabei por divagar, toda a nossa vida é cercada por coisas e pessoas desejadas, elas passam, as vemos uma única vez_ de um jeito intenso ou desinteressado_ ou encontramos com elas várias vezes, também de forma indiferente ou intensamente. Tudo isso tem a ver com o tempo em que nossas vontades chegam ou quando começam a existir ou ainda quando existem e percebemos sua presença como se fosse algo exterior a nós mesmos.

Quando surge em sensações estavam lá em nossos pensamentos?
Quando se cumprem, tão mais tarde, eram ainda aquelas vontades iniciais?

As coisas parecem sempre chegar tarde, como se não tivéssemos mais nada a dizer, elas vêm com uma camada de normalidade tornando o desejado algo vão, inútil, quase um sarcasmo do tempo para com as nossas esperanças. A esperança é a prova da existência do desejar. Mas pode ter o significado de armadilha e, assim, forma-se um círculo: desejos, esperas e ciladas tornando o mundo outro que não o mesmo. Substituímos, trocamos, esquecemos, lembramos ‘desejos’ o tempo todo, eles vêm invertidamente; eles, quando vêm, já não são o sonhado. Perderam-se? Ou fomos nós que ao temer as brincadeiras da vida acabamos dando um jeito de torná-los menores porque se nada vier, a espera não terá consumido tanto do que somos. Terá sido apenas a espera usada para povoar a existência e fazer de conta que "algo vivido" foi realmente importante, embora sequer possa ter acontecido. Da mesma forma, como o tempo não serve para justificar a continuidade de um querer que nunca é somente um, mas vários, falar sobre aquilo que sempre nos acompanha serve para se pensar em Destino. Desejar desculpas é um desejo. Tudo o é ou pode ser. Tudo se torna uma espera. Mesmo quando possuir o significado de armadilha, coisa não-desejada, eis então o sentido invertido. Uma vez um homem disse “é preciso amar o destino que se possui. Amar aquelas coisas onde colocamos um valor só nosso_ onde colocamos o nosso amor diante da vida.” Amar o próprio destino e aceitá-lo, pois há nele muito mais razões para se viver que aquelas imaginadas e, por vezes, tudo aquilo pelo qual viveríamos e também pelo qual desprezaríamos o mundo inteiro. E quando vem a culpa por tal desprezo, em silêncio podemos pedir perdão sem sabermos a quem ou porquê, pois também aí há amor. Insano. Concessão irracional disfarçada de compaixão para consigo próprio. Como naqueles dias em que uma palavra, só uma, faz valer tudo pelo qual se viveu até então. Ou naqueles dias em que nenhuma palavra teria o poder de dar sentido a qualquer coisa vivida, porque como nós, somos nós, ainda que numa palavra_ em todas ou nenhuma. Descer a avenida num dia de chuva após se ter saído do cinema e se permitir gritar alto, todos os dias são dias de descidas em algum lugar e para alguém com o lamento do desconforto a nos jogar na lucidez: todos os dias são instantes nos quais algo é desejado ou esquecido. Esperamos com os olhos voltados para um determinado momento onde pretensamente julgamos que nos pertence. Tal momento deveria ter sido vivido no tempo em que se deu e em nenhum outro. Não poderíamos jamais estar em outro lugar, pois, do contrário, o instante teria sido outro. No entanto, nunca pensamos se há uma data para que se cumpra até o final ou se o momento em que deveria se cumprir em definitivo deveria nos pertencer tanto quanto aquele de seu surgimento. Isto torna a vida menos jogada? Não, no fim tudo se torna como se fosse o último destino do mundo a tocar um estridente alarme para todos que se pensam sem destinos, sem defesas, quando nada se espera não há o risco do sentido ser lançado em outra direção e vir a ser uma cilada. E quem poderá saber? Se do destino ou do instante?
A vida soará continuamente como se fosse Hotel Califórnia em noites chuvosas onde o silêncio espera mais que um grito e nos mostra que o banal é tão o mesmo quanto qualquer outra coisa inusitada onde quem cala tem em si o desejo mais forte. Vamos então vivendo, com desejos substituídos, a sensatez nos obriga a isso, com desejos esquecidos, alguns foram tidos equivocadamente como tais, com desejos-inventados, não eram quase nada, apenas a desculpa de muitos para passar pela sua própria vida com o alívio de um pensamento que se diz: eu sempre quero algo, sempre, eu sou puramente um ser de vontade porque ainda existo, então, porque sou, quero, olho, sinto, nem sei bem o quê, mas isto não importa, apenas importa saber, o tempo em que algo chega já não mais me concede reconhecê-lo e, por isso, posso silenciar em mim mesmo: nada sei do que veio e do que partiu, nem daquilo que já não sou, só sei do que me move (in) sensatamente, espero do silêncio o seu desejo mais frágil para tornar a existência mais Hotel Califórnia:

‘uma dança para lembrar, uma dança para esquecer. E quando as vozes chamarem ao longe desejarei álibis, espelhos no teto e champanhe rosa no gelo.’ E ouvirei:
‘nós somos todos prisioneiros aqui, por nossa conta’ e se eu correr para a porta para encontrar a passagem de volta, para o lugar em que eu estava antes, o homem da noite pronunciará: você pode registrar a saída quando quiser, mas nunca mais poderá ir embora.’[1]
Eis que estou, em definitivo, aprisionada em desejos.

Anna Karenina & o Champanhe rosa no gelo
[1] ‘Em uma estrada escura e deserta, vento frio no meu cabelo/...Ao longe vi uma luz trêmula/ Minha cabeça ficou pesada e minha vista ficou obscurecida/ Eu tive que parar para passar a noite/ Lá estava ela na entrada/ Eu escutei o sino da missão/ E eu estava pensando comigo mesmo/ Aquilo poderia ser o céu ou poderia ser o inferno’/Então ela acendeu a vela e me mostrou o caminho/ Havia vozes debaixo do corredor/ Eu pensei ter ouvido elas/ dizerem/ Bem vindos ao Hotel Califórnia/ Que lindo lugar/ Que lindo rosto/ Vários quartos no Hotel Califórnia/ Em qualquer época do ano, você pode encontrá-lo aqui/ Ela tinha muitos garotos bonitos que chamava de amigos/ Como eles dançavam no pátio, doce suor de verão/ Uma dança para lembrar, uma dança para esquecer/ Então eu chamei o capitão/‘Por favor traga meu vinho’/Ele disse ‘ Não temos tido dessa bebida aqui desde 1969’/E aquelas vozes ainda chamavam de bem longe/ Bem vindos ao Hotel Califórnia/ Que lindo lugar/ Que lindo rosto/ Eles estão vivendo no Hotel Califórnia/ Mas que boa surpresa, trouxeram seus álibis/ Espelhos no teto/ Champanhe rosa no gelo/ E ela disse ‘ Nós somos todos prisioneiros aqui, por nossa conta’/E na câmara do mestre/ Eles se juntaram para o Banquete/ Eles espetavam com suas facas de aço/ Mas não podiam matar a besta/ A última coisa que lembro, eu estava correndo para a porta/ Eu tinha que achar a passagem de volta/ Para o lugar que eu estava antes/‘Relaxe’, disse o homem da noite/ Nós somos programados para receber/ Você pode registrar a saída quando quiser/ Mas você nunca mais pode ir embora.’ Eagles.