tag:blogger.com,1999:blog-165889352024-03-13T15:33:30.977-03:00literatura filosóficasandra adriana fasolo
exercícios de literatura 1994_1998
contos publicados em antologiassandra adria_na fasolohttp://www.blogger.com/profile/10290250930694294016noreply@blogger.comBlogger82125tag:blogger.com,1999:blog-16588935.post-24787501444284703262009-01-09T13:57:00.007-02:002009-03-25T03:00:03.495-03:00Carta Postal Para Cês<span style="font-size:85%;color:#000000;">*detalhe da mesa literária 1 feita por mim<br /></span><div></div><div><span style="font-size:85%;color:#000000;"></span></div><div><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEgIXPznDWO6FbM-X6sgtQcOri8vbTrZ9Dobga5CbjSyChS49Ey9BffyAVm74RwcjkjiEdeg4UiAjFep7U7N3Cq0iLHAMQ5ywultkrounLY_-m5-Ps2zGX2rYwe7hlC5OoKB34fpYg/s1600-h/DSC00117.JPG"><span style="font-size:85%;color:#000000;"></span></a><span style="font-family:trebuchet ms;"></span></div><div align="justify"><span style="font-family:trebuchet ms;font-size:85%;color:#000000;">Cês,<br />(...) voltei agorinha mesmo de Santo Antonio e Sambaqui, lugares que eu mais amo aqui na ilha, lá é diferente, lá a energia parece de outro lugar, lá o mar é manso e musical, lá as ruas são estreitas e sinuosas, lá a gente pensa que a ponte luz se move a si mesma e Aristóteles teria pensado nisso como algo intrigante porque vai mudando de lugar enquanto vamos nós percorrendo a sinuosidade das ruas tão pequeninas & Fichte explicaria com muita facilidade que a Ponte Luz é luminosidade apenas em nossa mente; lá moram os artistas plásticos da ilha, e músicos e talvez escritores; lá tem cores, tem lindo balanço das ondas & isto seria belo nas lembranças de Fernando Pessoa; lá tem cultivo de ostras & Jonh Steinbeck talvez tivesse escrito <em>A Pérola II</em> com outras cantigas; e a gente vê o céu como se só ali ele fosse cristal, cristal porque lá até o céu parece puro de mundo & os Magos & Alquimistas louvam tais energias; Cês, lá tem um portal para outras esferas, dá a sensação de que o universo está nos abraçando e é suave e perfeito; e lá a gente acredita que a vida não é só Terra, lá é um lugar fluido, não é travessia, já é depois de travessia & <em>Guimarães Rosa</em> talvez substituísse o 'nonada' por 'pantravessia.'<br />um abraço do tipo-sambaqui.<br />ádria</span></div>sandra adria_na fasolohttp://www.blogger.com/profile/10290250930694294016noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-16588935.post-1155605875562302172006-08-14T22:25:00.001-03:002008-12-05T02:07:41.714-02:00"Pé por pé, pé por si"<div align="justify"><span style="font-family:trebuchet ms;font-size:85%;color:#000000;">"E agora? Como chegar até à estrada? Quem sabe: se eu gritar, talvez alguém me escute, por milagre que seja. Grito. Grito. Nada. Que posso? Nada. E daí? Por mim mesmo, não sou de acertar com o rumo. Tomo fôlego. Rezo. Me enfezo. Lembro-me de "Quem será". E então?:</span></div><div align="justify"><span style="font-family:trebuchet ms;font-size:85%;color:#000000;"></span></div><div align="justify"><span style="font-family:trebuchet ms;font-size:85%;color:#000000;">"para a esquerda fui, contigo.</span></div><div align="justify"><span style="font-family:trebuchet ms;font-size:85%;color:#000000;">Coração soube escolher."</span></div><div align="justify"><span style="font-family:trebuchet ms;font-size:85%;color:#000000;"></span></div><div align="justify"><span style="font-family:trebuchet ms;font-size:85%;color:#000000;">Sim. Mas, e as aves, e os grilos? Os pombos de arribada, transpondo regiões estranhas, e os patos-do-mato, de lagoa em lagoa, e os machos e fêmeas de uma porção de amorosos, solitários bichinhos, todos se orientando tão bem, sem mapas ... O instinto. Posso experimentar. Posso. Vou experimentar. Ir. Sem tomar direção, sem saber do caminho. Pé por pé, pé por si. Deixarei que o caminho me escolha. Vamos!"</span></div><div align="justify"><span style="font-family:Trebuchet MS;"><span style="font-size:85%;color:#000000;">Guimarães Rosa. <em>Sagarana</em>: São Marcos.</span></span></div><div align="justify"><strong><span style="font-family:Trebuchet MS;font-size:85%;color:#000000;"></span></strong></div><div align="justify"><strong><span style="font-family:Trebuchet MS;font-size:85%;color:#000000;">sANdrA & "Pé por pé Pé por si"</span></strong></div>sandra adria_na fasolohttp://www.blogger.com/profile/10290250930694294016noreply@blogger.com2tag:blogger.com,1999:blog-16588935.post-1145226745176556862006-04-16T19:10:00.000-03:002006-04-16T19:32:25.270-03:00O Olhar Da Face Ao Lado & O Olhar Do Lado à Face<div align="justify"><span style="font-family:trebuchet ms;">Por que eles ficam tanto tempo sentados no sofá? Por que eles, às vezes, tanto? Por que eles parecem tão felizes? Por que eles não vivem como eu? O que eles tanto escrevem? Parece que vão sair. Para onde será que vão?<br />Por que a ouvi pronunciar: "a percepção desliza sobre as coisas e não as toca", será assim o modo de ser da Vida para sempre retornar?<br />Por que o ouvi responder: não tenha tanta certeza, não tenha tanta certeza, Karenina, "é ainda com meus olhos que chego à coisa verdadeira." </span></div><div align="justify"><span style="font-family:trebuchet ms;"></span> </div><div align="justify"><span style="font-family:trebuchet ms;">Por que sempre há uma pergunta e uma resposta entre eles seguida do olhar do lado à face? Espanto no final? Por que eu gosto de observá-los aqui de minha janela? Do meu ângulo e ponto de vista eu não os compreendo. É o meu olhar da face ao lado. </span></div><div align="justify"><span style="font-family:Trebuchet MS;"></span> </div><div align="justify"><span style="font-family:Trebuchet MS;">sANdrA & Os Contínuos Delírios</span></div><div align="justify"><span style="font-family:Trebuchet MS;">Entre aspas, frases de Merleau-Ponty_ Adorável.</span></div><div align="justify"><span style="font-family:Trebuchet MS;">_ & pensar que isso que amo escrever foi tido como "insignificante" pela Academia. Eu hein?! Como podem definir a Vida Interior de Um Ser Humano Como Coisa Insignificante? </span></div>sandra adria_na fasolohttp://www.blogger.com/profile/10290250930694294016noreply@blogger.com2tag:blogger.com,1999:blog-16588935.post-1145225294572574512006-04-16T19:05:00.000-03:002006-04-16T19:08:15.013-03:00Goethe & Sentimentos<p class="MsoNormal" style="MARGIN: 0cm 0cm 0pt; TEXT-ALIGN: justify"><span style="FONT-SIZE: 14pt; FONT-FAMILY: Arial; mso-bidi-font-size: 10.0pt; mso-bidi-font-family: 'Times New Roman'"><?xml:namespace prefix = o ns = "urn:schemas-microsoft-com:office:office" /><o:p> </o:p></span><span style="FONT-SIZE: 14pt; FONT-FAMILY: Arial; mso-bidi-font-size: 10.0pt; mso-bidi-font-family: 'Times New Roman'"><em><span style="font-family:trebuchet ms;"><span style="mso-tab-count: 2"> </span><o:p></o:p></span></em></span></p><p class="MsoNormal" style="MARGIN: 0cm 0cm 0pt; TEXT-ALIGN: justify"><em><span style="font-family:trebuchet ms;">"Enche teu coração tanto quanto puderes, e quando te sentires repleto, dá-lhe o nome melhor, aquele que quiseres, eu não dou nome algum, não encontro nenhum. Assim, o nome é apenas som, esvai-se em seus vapores"</span></em></p><p class="MsoNormal" style="MARGIN: 0cm 0cm 0pt; TEXT-ALIGN: justify"><span style="font-family:Century Gothic;">Quem sabe nominar sentimentos não seja o mais importante, já que não mudam os sentimentos em si mesmos. N</span><span style="font-family:Century Gothic;">ão posso antecipar coisas pertencentes primeiro ao tempo e só então, depois, a nós, & talvez.</span></p><p class="MsoNormal" style="MARGIN: 0cm 0cm 0pt; TEXT-ALIGN: justify"> </p>sandra adria_na fasolohttp://www.blogger.com/profile/10290250930694294016noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-16588935.post-1133669901819951072005-12-04T02:06:00.000-02:002005-12-04T02:18:21.880-02:00Imaginarium<div align="justify"><span style="font-family:trebuchet ms;font-size:85%;">Pensamento solto 1_ Este texto foi escrito entre o final do ano de 2000 e início de 2001 para um filósofo muito especial_ de coração e pensamentos nobres_ ainda que isso não seja visível. A parte sobre o Tio de Tel foi narrada por Paulo Michelotto via-email, não tenho certeza mas parece que se refere a uma obra editada. Infelizmente não tenho como agradecer ao autor pois não sei se o livro realmente existe. Se alguém ler o texto e houver a possibilidade de repassar a informação eu agradeceria. Todas as frases e idéias pertencentes a filósofos e escritores estão devidamente entre aspas. </span><span style="font-family:trebuchet ms;"><br /><span style="font-size:85%;">Descobri o nome do Autor do Poema do Tio de Tel e da descrição da estória no seminário, o escritor se chama <strong><span style="color:#33cc00;">Gerardo Mello Mourão_</span></strong> para acessar sua obra </span></span><a href="http://secrel.com.br/jpoesia/"><span style="font-family:trebuchet ms;font-size:85%;">http://secrel.com.br/jpoesia/</span></a><span style="font-family:trebuchet ms;font-size:85%;"> Buscar o nome do escritor no índice da página inicial pelo prenome Gerardo.<br />Pensamento solto 2_ Saudações ao Mar & às Estrelas</span><a href="http://photos1.blogger.com/blogger/3478/349/1600/itagua??u001B.jpg"></a><span style="font-family:trebuchet ms;"><span style="font-size:85%;">Coloco o texto Imaginarium aqui no blog como uma saudação de eu pratte in à minha ida para perto do mar, das ondas e da areia. Depois de mais de 4 anos que o escrevi... talvez escreva o II e morando perto das ondas eu prefira falar somente sobre a Terra_ o outro lado das Águas. Eu pratte in ao Velho Platão.<br />Anna Karenina & Finalmente as Ondas do Mar<br /></span></span></div><div align="justify"><span style="font-family:trebuchet ms;color:#33cc00;"><strong>Imaginarium </strong></span></div><span style="font-family:trebuchet ms;"><div align="justify"><br /><span style="font-size:85%;color:#33cc00;">Hesse<br />1 Belos e Malditos<br />2 Amor e Metafísica: remédio ou veneno?<br />3 Divagações Particulares_ o fluir da água que envolve a montanha e a terra seca da montanha que limita a água<br />4 O encontro com o estranho amigo e os deuses que nunca chegam<br />5 Phármakons do Imaginário Apaixonado<br />6 Não estamos a sós em nossas águas – fantasmas, fragmentos e eternos retornos<br />7 Nunca o vira tão feliz<br />Citação ‘O homem devia orgulhar-se da dor; toda dor é uma manifestação de nossa elevada estirpe. ‘Magnífico, oitenta anos antes de Nietzsche. Mas não é essa a passagem que eu pensava mostrar-lhe... espere, aqui está. Ouça: ‘a maioria dos homens não quer nadar antes que o possa fazer.’não é engraçado? Naturalmente, não querem nadar. Nasceram para andar na terra e não para a água. E naturalmente, não querem pensar. Isto mesmo. E quem pensa, quem faz do pensamento sua principal atividade, pode chegar muito longe com isso, mas sem dúvida, estará confundindo a terra com a água e um dia morrerá afogado.’ Hermann Hesse. O Lobo da Estepe<br /></span></div><div align="justify"><strong><span style="color:#33cc00;">Belos e Malditos</span></strong><br />Domingo, é outono, estamos na rua da Mansão. Sete horas da manhã, um rapaz alto de cabelos escuros e olhos semicerrados sai pela porta de uma antiga casa conhecida como reduto dos boêmios. Bem ao alto pode-se ler em letras luminosas ‘Belos, Malditos e Andarilhos _sejam bem-vindos’. Nihil veste um jeans já muito desbotado e um blaser preto com um caimento sem simetria, a gola levantada infiltra no seu rosto exausto um cultuar da noite fazendo transparecer a imagem de um homem sedutor, contudo ausente em sua própria sedução_talvez belo, talvez maldito, talvez simples andarilho como todos os que ali vêm. Ele segue pelo jardim, não se sente lúcido e seus pensamentos são como cortes num sonho aprisionado em territórios esquecidos pelo universo, os rumores de vozes e de blues, a insinuar um mundo cult-decadente, permanecem cravados em seu interior, apagando fragmentos de uma madrugada coberta de melancolia e folhas de outono, até então úmidas, no entanto mortas. Nessa hora, ele anda, tenta voltar para casa, seus passos são lentos, todavia tais passos incertos o levam a notar uma mulher, ela está sentada no chão, escorada numa árvore com a cabeça inclinada para cima. Provavelmente atravessara a noite tentando sair de seu deserto particular. Detém-se um pouco, ela pertence ao lugar, com toda certeza_ o corpo frágil, o rosto pálido e distante absorvidos por semelhanças daquela velha fábula da ‘criança proibida e maldita, encerrada em uma barquinha e entregue às ondas que a levam para o outro mundo, mas para esta há, depois, o retorno à verdade’. Formavam, todos eles ali, um outro mundo, ela, quem sabe, além de qualquer um que por ali já estivera. Ainda assim ele nunca conseguira acreditar na hipótese de que algum deles pudesse ser esta criança_ proibida e maldita com a verdade como prêmio por ter sido entregue às águas de um destino preso ao movimento da maré. Ela já aportara? A terra não mais abriga quem muito andou em outras águas? Soterrada em seu próprio pensar, a imagem de uma mulher a se afastar momentaneamente num amanhecer enfeitado por ele através de produtos de sua mente inquieta e resistente às banalidades. Ficção efêmera para uma salvação, quando não se tem o que salvar; romantismo deslocado para um tempo não menos equivocado, quando tudo que povoa nosso olhar é a transparência de uma lucidez para o nada, sua versão que para outros se chamava ceticismo. Percebe a confusão de minutos atrás se dissipar_ de repente estava lúcido e imóvel, não saberia dizer há quantos minutos estivera assim, culpa de hábitos noturnos. O acontecimento mais abominável para ele acontecera, era dia claro, entretanto não havia indícios do nascer do sol e de toda aquela normalidade que o acompanha com sua luz — para Nihil apenas o eco de uma única tentativa, o ressoar de tantos outros para viver e mostrar que estavam vivos, por meio de ruídos, do amassar de folhas há muito enterradas sob os próprios pés, descalços e nem assim observavam o contato com a terra úmida, não, nem ao menos isso. Algumas vozes soam, volta a caminhar imaginando o quanto tudo se torna mesmo diferente para o amanhã. Não suportava o outro dia_ quando ele chegava, sentia-se diante de uma confissão absurda e sobretudo arrancado de seu mundo inexistente. Como isso era estranho: o dia era glorificado pela humanidade enquanto a noite era tida como um espaço fechado onde muitos — ou poucos — vagavam em busca desses mistérios acorrentados e não largados ao mar, por medo ou por tantas coisas nunca ditas. Ciganos sempre errantes. Boêmios sem lar na madrugada. A noite não concede certos direitos e embora fosse um eterno retorno eram todos andarilhos silenciosos a viverem num tempo desprezado_ era tudo que podíamos ser, tudo que desejávamos, talvez. Com estes pensamentos Nihil passava agora ao lado da mulher que os despertara, se fosse dado a ele escolher um nome para esta mulher seria, não um nome, mas uma definição, ‘criança proibida e maldita’ com sua barca ancorada e sem escolha —turbulências de ondas soavam ainda distantes. Quando já estava quase no cordão da calçada ouve uma voz suave e muito, muito atraente, dessas vozes prenunciadoras_ por mais banais que possa ser o que dizem. — ‘Desce a contragosto em sua água aquele que busca o conhecimento’, a procurá-lo através de um olhar sempre pronto a dormir. Virei para trás mas ela dera as costas e se precipitava para dentro da Antiga Casa. Tive vontade de correr até ela, mas não o fiz, contive-me, eu voltaria lá, procuraria por ela, pela ‘criança proibida e maldita’ com voz prenunciadora e ao mesmo tempo deplacée, quem sabe todas sejam?, e que não fora banal.<br />Uma semana se passara, no Genesis Deus criara o mundo em seis dias e descansara no último. Nihil fechara os olhos e fantasiara outros mundos governados por deuses aprendizes os quais nunca ouviram falar em destinos traçados, ele, no entanto, não descansaria no sétimo, chegara o próximo domingo e ele à Antiga Casa, bela e não menos exótica com seus seres repletos de uma expressão noire. O som do blues soava extremamente alto, entrara procurando vê-la, a música muda de repente, "queria que alguém entrasse em minha vida como um pássaro entra em uma cozinha e começa a quebrar coisas e esbarrar em portas e janelas, deixando caos e destruição. Por isso aceitei seus beijos", a sensação de sempre acaba por voltar, aquele misto de plenitude-dor que só o amor-musicado nos faz sentir, uma inicial e falsa alegria para logo em seguida nos jogar naquela condição de algo perdido que só a nostalgia nos faz sentir. Migala era melancolicamente lindo. Continuo circulando, volta a tocar blues, uma armadilha, um paradoxo prometendo por segundos algo, pseudo-sensações de felicidade, para depois nos dar o que ele tem de melhor e mais denso como a criança que somos e vemos se afastando até sumir em definitivo. Mas ela não era blues, era somente a estranha mulher a trazer lembranças de um outro tempo em minhas sensações. Onde estaria?<br />— Vê? O destino lhe atira um faca, Nihil. Cabe a você decidir se a pegará pelo cabo e a usará a seu favor ou se a pegará pela lâmina e se cortará. Pensei nesse provérbio chinês durante todas as noites dessa semana e a mania de inverter o que leio me fez trocar a lâmina pela água: o destino lhe mostra o aquário, cabe a você decidir se entrará nele e descerá às suas profundezas ou se irá se afogar estando ainda em sua superfície como alguém que nasceu simplesmente para andar. Ou, ainda, se nunca entrará nele e, nesse caso, o destino lhe mostrará, o cabo da faca, às vezes, pode ser mais cortante do que a lâmina que o acompanha.<br />Sim. Reconhecera nele o não andar somente sobre a terra, seca ou às vezes umedecida, assim como ela, via o mundo de dentro de suas águas, quase impenetrável, assim como ela ter a água como abrigo é habitar encruzilhadas a mudarem constantemente de rumo com a agitação de suas ondas. Jamais ficariam? Belos e Malditos. Malditos e Belos, desejavam a água de seus próprios aquários, mares, nuvens e pontes, com a cumplicidade da noite a envolvê-los, infinitas vezes, em sensações mágicas e olhares aquosos em direção à umidade — como um convite a insinuar inofensivo a entrada para as águas deste mar e depois conduzir ao fundo do abismo, já não inofensivo, mas tarde demais para voltar<br />Todas as ‘crianças proibidas e malditas’ amam seus abismos. Elas amam também a noite.</div><div align="justify"><br /><strong><span style="color:#33ff33;">Amor e Metafísica: remédio ou veneno?</span></strong><br />Sabemos que entramos em nossos aquários, Nihil, mas não sabemos como viver dentro deles. O sutil impulso em transformar qualquer coisa em ficção faz, muitas vezes, com que a água fique turva: não se sabe mais onde termina a realidade e onde começa a ficção, onde estaria tal área-limítrofe? Talvez o vidro transparente a nos separar do outro mundo — a realidade mesma — acabe surgindo para nos salvar, do contrário, enlouqueceríamos. Brincar sempre, sob o fio da espada, poderia vir a tirar toda a lucidez de nossas águas, ainda quando sombrias, inquietas e em completo desassossego.<br />Há uma data em seu aquário, mas não se preocupe com ela em demasia. Afogue-se caso seja preciso, sim, se for preciso morra por suas verdades interiores sem trair a si próprio. Beba do cálice de Sócrates, está sempre presente com diversos tipos de líquidos, eis que nele se encontra algo especial: pode ser veneno ou não. O phármakon do qual Derrida tão bem falou: remédio, veneno, droga e filtro. A overdose de remédio é que o transforma em veneno? Renunciá-lo seria render-se ao mundo?<br />Tudo a nos envolver em nossas águas parece meio paradoxal ou somos nós a sentir tudo assim?<br />O phármakon bebido por Sócrates, agora o entendo: exatamente o líquido que nos faz viver, que se torna o centro de tudo em nossas vidas é aquele a nos arrastar para uma espécie de substância a destruir nossas ilusões mais sagradas — veneno. Estão ambos lá dentro do aquário e se, por um lado, o remédio nos faz continuar vivendo, uma dose a mais ou a menos e pode se transformar em veneno. Talvez em overdose. Bebo desse cálice em pequenos goles e somente quando muito, muito necessário, não o quero de uma só vez. O fim, depois que estamos completamente viciados, será sempre o mesmo: viciar-se em seu próprio pensamento leva para caminhos sem permissão de retorno e isto é a única coisa a não envolver paradoxos. Queremos o princípio de tudo que aí está, mas o que aí está, em certa altura, não mais nos interessa, a realidade mesma diante do que somos obrigados a viver passa a necessitar de uma outra espécie de droga, um outro algo alquímico, pois o phármakon-remédio-alimento já não funciona mais, viciou e ao viciar não mais funciona nos empurrando para fora da realidade ou para os abismos do aquário — não se tem para onde ir.<br />Talvez ambos só sirvam para a metafísica e então desejamos uma alquimia, ainda inexistente dentro do que somos, para ajudar a suportar a realidade que nos embala. Com muita sorte voltarmos a ver fascínio diante do universo. Talvez uma regressão infinita de medicinas mágicas tão insistentemente procuradas. Nós dois, porém, nunca encontrávamos alguma que pudesse se manter além de uma madrugada. Nós dois éramos mutantes e seduzidos pela filosofia como se ela fosse a quintessência de onde todos os outros remédios-venenos surgiriam. Nós estávamos loucos e nada notáramos um no outro, nós queríamos expandir essa loucura desafiando a pedra filosofal, sobre a qual o universo fora construído, porque queríamos salvar nosso amor de cair no abismo no qual entráramos. Mas exístiamos, eu e você, Nihil, antes de nossa paixão e continuávamos muito ocupados em saber, por exemplo, qual a razão de nossa essência ser uma metáfora para alguns e para outros uma verdade eterna, em saber em qual ponto Aristóteles resolvera trair seu mestre Platão com toda aquela discussão sobre o Terceiro Homem, em saber quando um brilhante filósofo como Nietzsche realmente perdera a lucidez ou como Hegel chegara a tanto conformismo sem deixar de ser poético; na razão em por que há mais de 25 séculos falam e escrevem sobre as mesmas questões sem encontrarem respostas absolutas, por que a terra gira em torno do sol e o sol se move em espiral e para onde vai. E nosso amor se diluía em conversas ora encantadoras, ora áridas e sem sentido.<br />Por que ficávamos noites e noites falando sobre isso? Nós dois éramos céticos — como o amor seria sentido de outra forma?</div><div align="justify"><br />Você: sou vampiro de vozes e pensamentos, salvo o meu espírito através de palavras. Então alguns se viram para mim e dizem: não te acrescentou nada ver ou ouvir ‘isso’. Eu respondo: acrescentou sim, é preciso transcender os rostos que passam diante do nosso olhar para podermos tirar o pensamento daqui, transportá-lo para outro lugar, é simples, Karenina.<br /></div><div align="justify">Uma sensação me mortifica: que outro lugar? Não acreditavámos mais no transcendente, pelo menos não mais do que sendo outra ficção espalhada pelo mundo. Nihil falava como se frequentássemos um lar noturno com rotinas que necessitassem ser quebradas — de minuto a minuto — para combater desânimos provenientes de uma ambição existencial a qual estava além de nossa condição humana. Que outro lugar, Nihil? Ciganos não possuem nenhum a não ser em si próprios, em suas águas. Seguiu dizendo que caía sempre em pensamentos fragmentados, esta era sua única força, talvez intuitiva. Transcendendo o agora que via, não como sendo a metafísica ou pelo menos tentando que não fosse como ela, poderia recordar algo do passado com uma certa fidelidade em seus manuscritos imaginários. Para ter um passado de ilusória estabilidade e responder as mesmas perguntas sem entrar em contradição consigo mesmo, pois, segundo o que dizia, sua mania de pensar tornava cenas de suas lembranças instáveis devido ao fato de recordá-las conforme seu estado emocional de vontade. E, além disso, dissera: como tenho esse estranho hábito, Karenina, já não sei mais nada sobre a minha realidade sentida e aí o pensado também corre o risco de se perder, de sentir nessa rua, que fica para trás, a síndrome de eternidade, nosso passado, diluido, sabe-se lá para onde e porquê. Muitas cenas construídas a partir de uma só, apenas isso, Karenina. Fragmentos me salvam dessas cenas do imaginário e me devolvem apenas a uma delas. É coisa de andarilho, rien de plus.<br /></div><div align="justify">Agora um pensamento me mortifica: sou como você, Nihil, sou andarilha, sou noturna, ‘eu caminho entre homens como entre fragmentos’, porém começava a pensar na triste possibilidade de minha felicidade estar em um homem que nunca entrou em águas de qualquer mar, só conhecendo a terra seca, sempre terra. Mas eu queria você, queria seu rosto e suas palavras.<br /></div><div align="justify">Chove no gramado da Antiga Casa — você está com jeito de quem sabe sugar as coisas nobres do mundo, isto o torna vivo e morto a um só tempo. Eu amo você, isso pouco importa entre nós. Precipitadas chuvas vêm e vão e entre as ruas ouve-se algo deslizar torrencialmente como se o aquário de deus tivesse se partido e espalhado seu líquido por sobre nós. Quem pisará ainda aqui? Vou sair para fora, o aquário divino foi quebrado, quero a roupa preta grudada em meu corpo e meus pés descalços e molhados e esquecendo sob eles o vacilar demasiado de meu desejo. Passará por aqui, Nihil, com os pés úmidos também? Piso nas águas dessa chuva, não é hóspede, não pode ser, eu sou. Vou com passos lentos, tudo isso me incomoda pois não conheço meu destino, sei, devemos amá-lo, nossa fatalidade é não saber onde ele está. Como ser profundo, descer às profundezas de grandes águas, sem antes ter estado em sua superfície? Será preciso ainda manter os pés na chuva? Ela vem do alto, mas eu estou aqui, ela cai, mas eu ando por sobre ela, mesmo sem saber para qual rio correrá, sinto escorrendo em minha pele. Ouço você gritar, vamos, Karenina, você já está toda molhada, por que passos tão vagarosos? Respondo rindo muito alto, meio embriagada, não sei quando deus quebrará outro aquário, se quebrará, não sei quando ele entrará de novo em suas águas, ah, Nihil, precisamos parar de imitá-lo. Em resposta você me pegou no colo e saiu correndo em direção a sua casa enquanto dizia, deus provavelmente preferiria uma metáfora melhor para movimentar sua rotina divina, a metáfora água é somente nossa e de Heráclito; deus, é claro, queria um outro tipo de prisão. ‘Shelley sentenciou, todos os poemas do passado, do presente e do porvir são episódios ou fragmentos de um único poema infinito construído por todos os poetas.’ Deus talvez fosse simplesmente um poeta que vira nos gregos o phármakon para sua divindade monótona, para ‘o poeta o real se torna insuportável’, anseia-se pela ficção e pelas loucuras do imaginário. Deus, se existe, é poeta com certeza. Mas o que ele estava dizendo? Ora, ele era cético e estava falando em um Deus-Poeta entediado com a sua realidade. Bebera demais nesta madrugada, correra com Karenina entre seus braços, sentindo seu corpo gelado e úmido contra o seu, onde em toda aquela chuva a amara mais do que qualquer coisa que já tivesse sentido ou pensado — naquele momento a amara mais do que a si próprio e, no entanto, a filosofia logo retornaria para canalizar nosso fluir a um vampirismo sempre pronto a atacar idéias e mais idéias – com muito pouco a sentir.<br /></div><div align="justify">Se não fosse o mundo que nos cerca estar com você, Nihil, me bastaria por completo. Isso é loucura? Um primeiro gole da metafísica e não há mais volta? Você me ofereceu o líquido de seu próprio cálice como se me estendesse o Santo Graal, desculpe, mas não posso aceitá-lo. Não agora, agora não. Ainda não aprendi a me viciar em meu sentir. Às vezes me pergunto quando morreremos afogados em nossas próprias prisões. Você passou a confundir-se com a metafísica, dizendo ser o princípio e o fim. Todos somos, o princípio e o fim de nós mesmos e onde desejamos algo mais do que qualquer outra coisa: a não-vulnerabilidade ao tempo.<br />Quis levar-me junto? Estendeu-me o copo com água, o primeiro gole desta taça soa muito perigoso. Tenho medo de misturar nossos cálices. Há prisões distintas num mesmo tempo, líquidos iguais em aquários diversos, quartos diferentes. Eu soube sentir a paixão pelo seu pensamento e ar displicente e sedutor; as palavras movidas pela emoção, tão somente pela emoção — no movimento dos seus olhos úmidos também. Estava sempre vendo aquilo que se sobrelevava fortemente em cada parte sua que eu poderia conhecer. Acabei por pensar na possibilidade de você ser suave, poético, sensível sem que isso soasse ridículo. Quem sabe eu me apaixonara por entrelinhas a serem mostradas somente pelo meu olhar sobre seu corpo, sua imagem para mim: a de que possuía seu calor sem se deixar absorver por completo.<br />Há mais sedução num olhar perdido do que no anseio de liberar instintos que se tenta sublimar? Conversamos por muitas horas e por toda aquela primeira madrugada vi você tentar parecer tranquilo enquanto se irritava por estar sentindo algo não previsto. Você viu meus lábios tremerem e o ríctus da minha boca, levemente curvado para baixo e que davam ao meu rosto uma expressão de tristeza, foi olhado por você como se meus lábios tivessem sempre pertencido ao seu toque. Eu escravizaria minha boca na sua se eu soubesse que seu sangue lateja de desejo pela minha pele como em relação à metafísica – que tanto anseia e tanto nega, mas sei que amaria poder acreditar sem dor.<br /></div><div align="justify">Imagens fortes. Lembro daquele dia chuvoso e frio e onde o vento agitava meus cabelos nos olhos e me impedia de vê-lo com maior clareza. Eu estava parada com um livro nas mãos e ao meu lado você parecia estar somente para que eu pudesse falar em voz alta. Alguns metros à nossa frente, sob uma tenda azul, algo meio cigano eu via um menino pisar na areia branca e molhada com os pés descalços. Imóvel, você também observava a cena sem mover nada em sua expressão, seu cabelo era o único a se agitar em ondas pelo forte vento de inverno. Passei o livro para suas mãos, você continuou inexpressivo, porém enquanto o pegava e o abria percebi que saíra do estado estóico da indiferença, provocado pelo excesso de autocontrole, e o vira pensar profundamente em algo, um algo a ocupá-lo por inteiro. Estava mais silencioso do que o seu normal. Depois baixou a cabeça e enquanto o menino ficava com os pés cada vez mais enterrados na areia e concentrado em seu próprio aquário, ainda tão aliviado de sensações incompreensíveis, então você leu: ‘para você que não conheceu as melhores performances, não ouviu a pura verdade, que viveu às margens dos que lhe amaram. Essa lua também é sua, embora Deus não queira. Esse mar de águas claras e salgadas é o que tempera seus pecados (...)’ Nos afastamos do menino e de sua brincadeira infantil e fomos cada um de volta para nossas águas salgadas e já não tão claras. Eu iria continuar bebendo da taça de Baudelaire e em outras mais, provavelmente no cálice de Rimbaud e Cioran. Estava preparada para pingar algumas gostas, de qualquer phármakon que encontrasse, nesse cálice vazio — e tudo porque eu lutava para ver você acreditar, eu seria capaz de amá-lo mesmo em minha prisão e enterrada em minha filosofia. Prisioneira do convite inofensivo de minhas águas, as quais pertencem ao balanço falsamente calmo de estranhas coisas em sua superfície — demorando para nos mostrar o que há lá no fundo.<br /></div><div align="justify"><span style="color:#33cc00;"><strong>Divagações particulares — O fluir da água que envolve a montanha e a terra seca da montanha que limita a água</strong></span><br />Eu não sei quando dei o meu primeiro gole e se prefiro um ou outro: remédio-veneno. E entre momentos de euforia e de em um nada crer vou bebendo da mesma taça do nosso caro Platão-Sócrates. Recusei sua taça, elevar o que sinto por você faria com que eu me rendesse a mim mesma numa espécie de phármakon da sedução e quando o declínio viesse junto com a degradação do nosso desejo eu não poderia continuar a habitar minhas águas, pois o declínio teria a dimensão e o calor do seu toque – suas mãos deslizando sobre minha pele, minha pele a escorrer de suor em seus dedos.</div><div align="justify"><br />Talvez os sistemas filosóficos sejam mais fáceis de serem compreendidos do que divagações particulares e, por isso, acabamos por nos render a eles, já estão prontos. Não falam de um tipo de sentir sobre o qual gostaríamos de ouvir ou viver, sentir soa antigo e equivocado para os sistemas. E, no entanto, é reconfortante saber sobre sua existência para quando eu estou cansada, tão cansada que Hegel me parece o maior poeta já existente, não importando se sua teoria filosófica é plausível ou não... eu o transformo em poeta, em louco, em uma divagação particular sem que seja minha. Tomo para meus pensamentos suas palavras refinadas e seu determinismo consola o meu cansaço. Eu vou junto com a história da humanidade, sem querer eu vou sendo arrastada e, então, continuo a sentir, afinal, o ‘mundo é um mar em que as ondas se agitam num devir incontido’. Eu não sou devir, mas sou incontida. Nem mar, nem ondas, apenas um líquido — às vezes teima em transbordar do aquário.<br /></div><div align="justify">O que a mania tem a ver com tudo isso? ‘mania’ de buscar o que não vamos encontrar? a essência da filosofia como algo inacessível? pois do contrário, filosofaríamos ainda? Não importa, eu quero descer às profundezas do meu aquário leve-me ele à loucura ou à irracionalidade total, enfim, tudo igual. Poderia me levar até onde seus olhos estão nesse momento? Tenho a mania de querer olhar meu mundo com os seus olhos, mas não os vejo.<br />O amor para Platão é acima de tudo falta, de possuir aquilo que não temos em nosso próprio ser. Relembre o discurso sobre o amor da estranha mulher de Mantinéia, no Banquete. Quando alguém nos preenche já nos ensinou a suprir alguma falta então descobrimos algum atalho e partimos em busca de outros mais; buscar incessantemente, é somente isso o existir, nadando de um lado para o outro. O amor é bastante contraditório, não? Buscar, encontrar, sonhar e sobretudo elevar-se a ver cada vez mais alto — sentir cada vez menos.<br /></div><div align="justify">Lembra do sonho de Sócrates escrito no ‘De Anima’ de Platão? Sócrates sonhara com um belo cisne e seu canto mais sublime, quando amanheceu Platão bateu à porta de Sócrates e este disse: ‘eis meu cisne’. Por muito tempo foi assim que você me chamou: cisne, com o canto mais belo que podia existir. ‘Quando eles sentem aproximar-se a hora da morte, o canto que antes cantavam se torna mais frequente e mais belo do que nunca, pela alegria que sentem ao ver aproximar-se o momento em que irão para junto do deus a que servem, é a dor que lhes inspira aquele canto supremo. Para mim, diz Sócrates a Símias, não é a dor que faz com que eles cantem, como não é ela que faz cantar os cisnes, eles são as aves de Apolo, possuem um dom divinatório e é a presciência dos bens existentes no Hades que os faz, no dia de sua morte, cantar de modo tão sublime.’ Eu não sabia que os cisnes cantavam, não sei a razão, mas sempre me pareceu que eles fossem silenciosos. E se assim for estive rondando suas águas com o silêncio que eu pensara existir no canto dos cisnes e, por isso, um não ressoar de despedida. Cantos sublimes tentam nos salvar de sons que vagam por vales e montanhas, criados em momentos de desespero e solidão, simulacros de despedidas em lendas antigas, a bater à nossa porta para trazer palavras perdidas em sonhos. Levemente mais silenciosa sinto, meu canto é apenas um som imaginário a me conduzir por entre um movimento de águas e uma mobilidade de sensações impulsionadas por seduções imaginárias. Quero, assim, um canto sublime, porém silencioso, um canto só meu.<br /></div><div align="justify">Ora, como dar prioridade para a emoção e não para a razão? Como saber onde começa uma e termina a outra? Colocar a razão acima da emoção ou vice-versa, sem termos certeza onde está tal área-limítrofe parece um absurdo. A área-limitrofe seria como um fio condutor? Um simples fio, quase invisível, que ora nos conduz para a razão e ora para a des-razão?<br /></div><div align="justify">Há um não-ser em cada louco que habita sua própria loucura?<br /></div><div align="justify">Estávamos ficando cada vez mais céticos, naquele eterno retorno de uma nova noite, caminhávamos até a Antiga Casa envoltos por um frio intenso e gélida umidade, no céu nenhuma estrela, também nenhum vento soprava, apenas muito frio. Nihil passara gel nos cabelos e dava a impressão de estarem molhados por toda aquela umidade do tempo, estava, além disso, com olheiras profundas, dormira pouco e somente na parte da manhã. Ainda assim, atraente, as olheiras combinavam com seu olhar escuro e seu tom de pele. Uma voz alta com pronúncias aos tropeços me tiraram desses pensamentos sobre sua imagem. Virei para o lado e vi um homem, já velho, com um sobretudo esfarrapado e o cabelo comprido, com a barba por fazer e os pés descalços. Nihil percebeu meu interesse e disse: — Melhor não olhar muito para ele, Karenina, está sempre rondando por aqui, nunca o viu? Não, nunca o tinha visto. Nihil conta, não sabe quem foi, um dos boêmios da Antiga Casa dera um exemplar de Assim Falou Zaratustra para o mendigo e desde então andava por ali, com frases de Zara soltas ao vento e, por isso, o chamavam de O Louco. Às vezes o pessoal vinha até a frente e se divertia com ele, era cruel isso. Paramos em frente à entrada do jardim e eu pergunto qual parte de Zara ele estaria gritando naquele momento. Não sei, responde, Nihil, acho que o Viandante, porém as fases parecem sem conexão. Ele concorda em ficarmos ali no jardim, próximos à rua, observando, era uma cena de profunda tristeza para mim porque era o espírito de um homem, que poderia ter sido um espírito nobre e que se deixara seduzir tardiamente por Nietzsche, perdido e embriagado em meio a gritos que professava enquanto mantinha o livro em sua mão esquerda com o braço estendido para o alto, como se carregasse uma bandeira. Alguns carros passavam e se tornava necessário desviar dele por estar bem no meio da rua, um rapaz passou e com a cabeça para fora mandou que ele saísse dali e calasse a boca, mas ele não deu a mínima importância. Como é triste amar algo sem lucidez. Acho que era assim que o Louco estava a amar as palavras de Zaratustra, deve ter se apegado à obra, pois mesmo em meio a sua loucura intuíra que todos procuravam a Montanha de onde Zara viera, intuíra, essa montanha deveria estar dentro de cada um, rodeada por águas de um mar que ora enxergamos como pura água e ora como uma planície onde não há mais verde, só a terra seca. Depois ele abrira o livro e começara a ler, ainda aos tropeços, ‘eu sou um viandante, seja qual for o meu destino será sempre de um viandante, tempo, acasos, sorte, terras estranhas, minha solitária peregrinação, derradeiro refúgio, derradeiro perigo, que seja minha melhor coragem não ter nenhum caminho atrás de mim, deste portal chamado momento, uma longa, eterna rua leva para trás: às nossas costas há uma eternidade. Tudo que pode caminhar não deve já uma vez ter percorrido esta rua? E se tudo já existiu que achas desse momento? Também esta Antiga Casa não deve já ter existido? Também esta longa rua que leva para frente, eu sou um viandante’. Ele estava a misturar partes diferentes do livro, é provável que tivesse desmontado de tanto manuseá-lo e ele acabara reunindo novamente as páginas sem prestar atenção a sua seqüência correta. Comecei a chorar, era impossível para quem conhecesse Zaratustra não chorar ao ver a cena do Louco, ali, no meio de uma rua semi-escura, descalço naquele frio intenso numa noite sem estrelas.<br />— Não fique assim, minha Karenina, você não tem como saber se o que ele está sentindo corresponde a terrível imagem que estamos vendo, sentindo do nosso jeito, não tem como saber. Vem, vamos entrar, ele vai ficar aí por horas ainda e não quero nem que você congele nem que acabe indo até lá perguntar o que ele mais ama em Zara. Nihil me puxou pelos ombros para entrarmos, mas antes de me virar completamente vi que o Louco guardara o livro no bolso do sobretudo esfarrapado e se pusera a dançar de forma agitada, ele já se encontrava na calçada do outro lado — O Louco dançava como um feiticeiro. Então eu murmurei para Nihil, eu também, Nihil, eu também, só acreditaria num deus que soubesse dançar.<br />— Além de ser poeta, não é mesmo? Ou já esqueceu disso? Ora, Karenina, não fique tão triste por ele, ouça, quando os deuses morrem dentro de nós morrem sempre de tipos diferentes de mortes, somos nós que os deixamos morrer por nos sentirmos traídos por eles, que nunca chegam, um dia você vai ouvir a história de Tel sobre seu tio Gerard. Talvez o Louco tenha encontrado em Zara um novo deus para si próprio, quem sabe em vez de permitir que morresse tenha permitido nascer algo novo dentro de si? Talvez nunca, até então, tivesse carregado algo precioso dentro de suas andanças. Como vamos saber? Ele não vai responder com lógica nada que perguntarmos. E depois há um bom porto para cada território que seres noturnos como nós percorrem. Sempre há. Nós não temos o nosso?<br />Sim, Nihil, eu e você e nossas madrugadas — o amor um pelo outro. Talvez. Eu chorara, mas o olhar de Nihil também se modificara, estava com uma sensibilidade terna, um brilho que nunca havia percebido antes, uma ternura plena. Talvez de compreensão. Fiquei na ponta dos pés e o abracei e beijei. Nessa noite não bebemos nem conversamos, apenas dançáramos como há muito não fazíamos. Dançamos no terraço da Antiga Casa, com as estrelas, que não estávamos vendo, sobre nós, e, lá embaixo, o Louco, que agora dormia com o rosto atirado na calçada, sonhando com seu Zaratustra particular, talvez salvando seu próprio deus, enquanto sua face deitada naquelas lajes frias me fizeram recordar que ‘as almas da meia-noite, são mais claras e profundas do que qualquer dia’.<br /></div><div align="justify">Esquecer impede que a tristeza conceda a uma pessoa triste somente os traços da mãe de Eros - para impedir que fique a mendigar as sobras de festas, impedir que se sente à porta, descalça, ‘sem lar, a dormir no chão duro, junto aos umbrais das portas, ou nas ruas, sem leito nem conforto.’ Por muito tempo, depois da cena do Louco, andei descalça em meus abismos, tentando voltar para lugar nenhum.<br /></div><div align="justify">Utopia, significado para lugar nenhum e enquanto você proclamava ‘conhece-te a ti mesmo’, sempre repetindo o oráculo de Delphos, eu dizia: antes é ‘preciso confessar, todos tememos a verdade’ do ‘abismo ainda não trilhado’ pelas nossas emoções, pensamentos, sobretudo os sonhos e o imaginário que habitam em nós sem que os percebamos. A confissão é necessária antes da travessia, mesmo para andarilhos.<br /></div><div align="justify">Sem jogos de linguagem — talvez em sua superfície algum persista. Nessa nova madrugada o que ronda suas águas? Em outras circunstâncias eu não jogaria os dados sobre a mesa e me conformaria com a possibilidade de destino. Não devemos duvidar de coisa alguma, por outro lado, o surpreender-se, o admirar-se, o tháumas do qual Platão fala e, depois, Aristóteles em sua Metafísica, faz com que continuemos sendo quem somos sem abandonar labirintos invisíveis, sem perder o encanto pela possibilidade de caminhos ainda desconhecidos. O aquário de Platão era úmido, muito úmido, mas o de Heráclito superou toda a força que pode haver na falta de algum movimento. Qual deles habita sua superfície?<br /></div><div align="justify">Talvez recomece de outra forma, estou cansando de Werther’s. Existiu um tempo onde havia distância entre nós e nele você me seduzia através das palavras e da linguagem e então nos aproximávamos. Mas a proximidade ameaça o encanto do amor, banaliza porque nos força a perder tempo com coisas que não mais nos comovem. À medida que a distância foi diminuindo o encantamento esteve quase a se perder. Dizem que águas de diferentes aquários não podem se misturar jamais; um grande amor, sem nenhuma certeza se será grande ou se será, ao menos, amor, passageiro, transitório, cansativo. Abro novamente as páginas de Werther e me pergunto se Charlotte não funciona para ele apenas como um apelo universal, apenas para explodir seu próprio sentir. Acima dela talvez houvesse a possibilidade dura da realidade escrita por sobre outros nomes, nada além de nomes. Eu não quero acreditar que tanto faz amarmos essa ou aquela pessoa porque se está ocupado demais com abstrações insolúveis, não quero crer que fazer da filosofia sua droga personalizada tire esse espaço que o destino nos mostrava a todo instante — com o qual você se assustava e eu também.<br /></div><div align="justify">Algo passara a se esgotar em mim, não sentia mais a densidade da água, algo se esgotava em mim e eu não sabia se se isso era bom ou ruim. O amor virara ceticismo de amor romântico. Eu, apenas, cética. Algo há que produz o fogo e suas cinzas. Pisei hoje por sobre elas, geladas. Restos substituídos. Senti um abandono como naqueles dias em que o vento parece cobrir o mundo de tristezas e raspa a nossa pele para lembrar que a tristeza não é um privilégio só nosso. Culpa do vento onde o destino se alegra com as próprias cinzas imaginárias, produzidas por ele mesmo, a rondar uma liberdade que poderia ter existido no passado.<br /></div><div align="justify">Ainda quero ver esse mundo transformado em ficção, porque a realidade se nega ao balanço das ondas – porque a realidade se nega ao mar. A montanha ainda está longe. Minha pele fria. Há algo de suave ainda no que sou. Subo à montanha. Encontro você lá, Nihil, de onde poderemos ver os grandes rios e abismos que desviamos por falta de coragem. De onde poderemos ver o fluir da água que envolve a montanha e a terra seca da montanha que limita a água.<br /></div><div align="justify"><strong><span style="color:#33cc00;">O encontro com o estranho amigo e os deuses que nunca chegam</span></strong></div><div align="justify"><strong><span style="color:#33cc00;"></span></strong>À Gerardo Mello Mourão, pois aqui está boa parte de sua literatura maravilhosa. </div><div align="justify"><br /><strong>Belos e Malditos</strong> — mais um inverno iniciava e nós seguíamos pela noite, ora barulhentos, ora silenciosos, mas dessa vez você, Nihil, chamou o Tel para sentar e beber com a gente. Seu estranho amigo chegou, sentou-se ali mesmo na grama úmida de sereno, pois estávamos no jardim da Antiga Casa, e começou a falar sobre seu tio Gerard, o Mourão. Eu fiquei encantada com ele, claro que fiquei, era o mais subversivo que você me apresentara, percebia-se em Tel um phármakon extravasado como se fosse um fio de ligação entre a sua mania de metafísica e seu ceticismo refinado e brincalhão. Contou que seu tio Gerard fora seminarista, assim ele começou a falar, e depois,<br /></div><div align="justify">"meu tio Gerard foi um exemplo desse tipo de início de vida, tinha os olhos achados e perdidos como todo aquele que se propõe a ver os olhos de um deus. Apenas ele se detera mais numa coisa, ele era mais místico, todos procuram desesperadamente a face daquele que nos prometeram e no lugar dela era sempre vazio. Nada. Nenhum deus. Nada. Nunca nada. Seqüência de nomes, todos reais procurando em vão a mesma coisa sob a capa de estudos, línguas e outros afazeres: a face de deus. Eu digo a mesma coisa que meu tio: não achamos. E é isso que nos remete lá para dentro e não nos deixa sair: não conseguimos ver nada. E dissemos: lá não há nada. E o medo que temos é de que estejamos certos, de que certos pensamos estar. Meu tio era considerado santo e isso queria dizer que ele voava por sobre os problemas do mundo dos meninos, do jeito que eu, Tel, pairo por sobre deus sabe o quê e as pessoas acham que não podem me sentir ou tocar. Ele morava num lugar terrivelmente lúgubre, praticamente ao redor do cemitério dos padres redentoristas. Tudo respirava morte. Visitei o antigo noviciado e quase vomitei, não agüentei ficar no pátio-cemitério. Fedia a flores de defunto e lá havia um padre inteirinho que se recusava a se dissolver, ano após ano abriam para retirar os ossos e lá estava ele inteirinho. O milagre para mim era o mais puro terror." Gerard contava também sobre um padre que pedia a deus para morrer depressa. É a alusão a esse que não morria nunca. Um exercício de guerra onde se ficava a maior parte do tempo tentando se comunicar com um deus. Imagine, Karenina, como foi isso para eles que nunca acharam Nada. Lembro quando ele estava quase morrendo e antes de dormir entoava um canto particular, cheio de metáforas, eu dormia pensando no quanto tudo aquilo murmurado por ele, todas as noites e durante meses, poderia fazê-lo sonhar com a face de um deus nunca encontrado. Às vezes eu chorava baixinho porque sentia uma apropriação do seu sangue, de sua frustração, no meu próprio sangue. Um vampirismo confesso de algo profundo que nos toca e nos desencanta. Eu me desencantara cedo demais com o metafísico, pois tivera um tio com olhos achados e perdidos. O hino noturno dele? Era breve, muito breve, falava no "caminho da águia no ar, o caminho da serpente sobre a pedra, o caminho da nau no meio do mar e da espada pendurada sobre os oceanos, temperando o caminho do bravo onde os demônios passeavam entre clérigos operosos e anjos indolentes: do outro lado do mundo, entre charutos fumegantes e copos de cerveja holandesa, entre silêncios e algazarras, a palavra e a sombra de Platão transitavam pela sala com voz sonora: o tempo de loucura é que abate à porta do banheiro o guerreiro que só tem medo de si mesmo."</span><a title="" style="mso-footnote-id: ftn1" href="http://www.blogger.com/post-create.g?blogID=6466408#_ftn1" name="_ftnref1"><span style="font-family:trebuchet ms;">1</span></a><br /><span style="font-family:trebuchet ms;">Quando Tel terminou a história, virou-se para mim e perguntou: o que você busca no fundo do seu aquário, Karenina? Em suas águas? O que espera encontrar? Voltei meus olhos para ele sentindo minhas têmporas pesadas, como se visse ali mesmo o grande Nada do seu tio Gerard, como se ele estivesse também sentado ali e esperasse uma resposta minha, respondi simplesmente: Nihil.<br /></span></div><div align="justify"><span style="font-family:trebuchet ms;">Parti com os pés secos e lentos em direção ao meu porto seguro e eu sabia, lobos da estepe têm total razão, não nascemos, é claro, para o aquário, é tarde, já o enchemos de água e nos seduzimos com o que encontramos, mas por momentos queremos abandoná-lo, sabemos, não é o nosso lugar, nascemos para andar na terra, recusamos, porém, tal destino ou natureza e permanecemos nele, nadando de um lado para outro, em círculos, afogados em solidão, em uma consciência de finitude ilusoriamente transformada, por alguns instantes, na síndrome de deus. A existência torna-se, então, paradoxal, queremos um lugar que somente nos reconhece como intrusos e o verdadeiro mundo, a realidade mesma, é desprezada, pois eis que já olhamos através do vidro do aquário e o que vemos já não nos é tão atraente. Entre um mundo ideal ou imaginário_ o próprio aquário_ e o mundo lá fora, preferimos o primeiro e assim, podemos morrer afogados, inventando hinos breves para recitá-los na madrugada.<br /></span></div><div align="justify"><span style="font-family:trebuchet ms;">Senti hoje as gotas do rio de Heráclito grudadas na minha pele, sempre que essa sensação me invade meu pensamento se torna invertido. Há algo além dessa existência empírica? Precisávamos acreditar no transcendente, mas caíamos sempre no ceticismo. Loucura? Tentarmos dividir isto é que se transformou em loucura. É preciso estar preparado para habitar a própria prisão metafísica. Talvez o ceticismo acabe por nos conduzir a uma síndrome de deus invertida ou a uma proximidade de suas sensações. Terá ele perguntas a roubarem seus pensamentos? Uma espécie de metafísica de deus? Questões a tirarem seu sono ou a deixá-lo deprimido? E ao olhar para nós, talvez pense: tudo o que estão fazendo é a mesma coisa que nós, os deuses, também fazemos há um longo tempo. O universo é uma regressão ao infinito de todas as idéias inexplicáveis, não as dei porque nem mesmo eu as possuo, eu também sou um Sócrates, um Platão e um Nietzsche, mas não sou a metafísica, apenas durmo em outras águas. Dessa forma, começara a amar os céticos porque nada esperando possuem mais coragem e podem, assim, movimentar mais peças em suas águas, estejam elas onde estiverem.<br /></span></div><div align="justify"><span style="font-family:trebuchet ms;"><strong><span style="color:#33cc00;">Phármakons do Imaginário Apaixonado</span></strong><br />Os dias que passávamos juntos eram raros. O amanhecer também, mas nesses havia a sensação de despedida e eu não sentia falta deles. Você acordou certa manhã com uma estranha frase, ‘a morte não é um acontecimento da vida, não se vive a morte.’ A metafísica também não é um acontecimento da vida, não se vive a metafísica, a não ser que esteja preparado para se afogar. Simples exigência profunda de sono, mas um sono que é de cada um que a sonha, nada mais. Eu acordara com o sono e o sonho latejando no meu sangue e nos culpamos por despedidas circulares, mas como tentar infiltrá-las na normalidade? Amar era complicado, em qualquer lugar e poemas lidos no original. Meus pensamentos sempre difusos pela manhã não ajudavam em nada, os absurdos da noite, por não estarmos de guarda contra nós mesmos, pareciam não nos pertencer. Persuadir-me de que dormir me levará para dentro ou para fora do aquário? Você continua dormindo?<br />Estava sonhando? </span></div><span style="font-family:trebuchet ms;"><div align="justify"><br />Você também tinha seu hino preferido, dizia, com um sorriso maroto no canto da boca, o Canto Noturno havia sido escrito para boêmios e céticos-suaves como nós dois, e frequentemente enquanto passava um café preto e eu preparava o chantily, ficava cantarolando baixinho, nesses momentos eu via você muito, muito feliz. O Canto era realmente de uma beleza enorme, musicado, apenas ali, entre as paredes de uma antiga cozinha de madeira e o murmurar rouco de sua voz: ‘é noite: falam mais alto, agora, todas as fontes borbulhantes — e também a minha alma é uma fonte borbulhante. É noite: somente agora despertam todos os cantos dos que amam. E também a minha alma é o canto de alguém que ama. Há qualquer coisa insaciada, insaciável, em mim; e quer erguer a voz. Um anseio de amor, há em mim, que fala a própria linguagem do amor. Eu sou luz; ah, fosse eu noite! Mas esta é minha solidão: que estou circundado de luz. Ah, fosse eu escuro e noturno! Vejo olhos à espera e as noites iluminadas do anseio. O desejo de desejar, tocarei ainda a sua alma? Para onde foram as lágrimas dos meus olhos? Seres escuros, noturnos, somente vós, somente vós! Ah, há gelo em volta de mim; queima-se minha mão tocando em gelo! Ah, há uma sede, em mim, que almeja pela vossa sede! É noite, ai de mim, que tenho de ser luz! E sede do que é noturno. E solidão.É noite: como uma nascente, rompe em mim, agora, o meu desejo – e pede-me que fale (...)’ Depois você me pegava pela cintura e rodopiava ao redor da mesa olhando para minha boca, de repente parava, colocava meu rosto por entre suas mãos e me beijava como se fosse sempre a última vez, um beijo que vinha junto com sua respiração como um toque em meu pescoço de sensação-de-partida, desespero-velado — como se disséssemos ‘adeus’ antes de dizer ‘como você está nesta noite?’ Bem, estamos bem, não é mesmo? E não quero dizer adeus. Por que diria adeus para você, Nihil? Se pensar na umidade noturna, no canto noturno de um tempo a ser descoberto, olhe para mim ou murmure simplesmente:<br />‘eu era justo como uma criança, então agora sou somente um homem.’<br /></div><div align="justify">A metafísica que nos unia, puramente entrelinhas a circundarem nossa existência. Uma espécie de além-do-empírico nos aguardava a cada movimento de um jogo de dados com possibilidades finitas, mas secretas. Gostaria que tivesse olhado através da transparência os vários aquários que construí e embora nenhum sirva para viver a realidade foi o que o seduziu, não, Nihil? Também o que nos distanciou através da proximidade. Aqui o phármakon foi veneno. E quando uma tremenda intransigência com a realidade se manifestava nos meus pensamentos e logo após nas minhas atitudes, percebia o quanto simulava gostar da luz do dia. Como você, Nihil, odeio a normalidade, odeio esse ir e vir sem sentido que todos damos as nossas vidas. Existir então é isso? chinelos de lãs e jornais? Abominávamos tal coisa e as pessoas, que nem sequer eram capazes de olhar para o quarto onde o seu aquário estava, nos cansavam profundamente.<br /></div><div align="justify">Como alguém pode morrer sem nada ter visto de si próprio?<br /></div><div align="justify">O que nos uniu foram nossos pensamentos, você dizia que eu poderia construir o que quisesse, ir para todos os lugares ou nenhum, falar ou silenciar, amar ou odiar. E dividir nossas águas. A noite de insônia me recordou noites melhores de boas madrugadas e a ilusão de possuir um tempo infinito soou e foi quebrada pelo retorno do meu olhar sobre fotos, bilhetes e músicas antigas. Do contrário, reviraríamos baús velhos colocando em risco nossas ilusões? Sempre alguém é que coloca o outro numa condição de Werther. Suposta realidade jogada por sobre pedestais, os quais funcionam melhor para aqueles que não possuem coragem; Werther para ser lido por aqueles que precisam de consolo. Bilhetes antigos funcionam melhor em dias de chuva e silêncio. E eu funciono melhor na metafísica de minhas águas. Estive equivocada com o seu durante tanto tempo. Mas eis que sinto sua falta, Nihil, como jamais você irá perceber que senti.<br /></div><div align="justify">Noite de intensa chuva — Eu não sei como eu sou, talvez o espelho saiba mas ele sempre me engana e nunca me mostra quem eu realmente sou, nosso nome é espelho porque somos muitos a expressar tudo que sentimos e pensamos, a expressar tanta mobilidade de nossas águas em nossos abismos que mudam com o clarear do dia. Nessa noite de intensa chuva decidiramos ficar em casa e você começara a divagar sobre imagens multiplicadas no reflexo do espelho, fizera até mesmo um trocadilho com uma parte do Apocalipse. Ria alto fazendo ilações de espelhos com Lúcifer, com legiões, anjos decaídos e alucinações oriundas da filosofia – tudo marcado com o sinal de Caim. Estava realmente se divertindo com tudo aquilo. Resolvi entrar na brincadeira abrindo o Zaratustra e comecei a ler em voz alta O Menino e o Espelho, ‘o que me assustou tanto em meu sonho que acordei? Não vinha ter comigo um menino, trazendo um espelho?’ Você foi muito rápido, pegou o espelho que estava pendurado na parede do corredor e com ele em frente ao seu rosto repetia ironicamente a última frase que eu acabara de ler, ‘Ó, Zara, olha-te no espelho’ agora, ó Zara, olhe para mim e verás onde estão seus pensamentos, sua vaidade e sua cobiça. Nihil me pegara de surpresa com a brincadeira, joguei o livro nas pernas dele que continuou a repetir sem parar que eu o olhasse para poder ver quem eu realmente era. Em meio a sua encenação de pijama e com aquele espelho se parecia mais do que nunca com uma criança, sem defesas ou abstrações complicadas. Foi um momento que despertou em mim um novo sentimento por Nihil e embora não suportasse pijamas, pois lembravam sempre noites recusadas a serem vividas, naquele momento foi algo mais do que sedutor e que acabou, também, despertando um outro jogo para dias de chuva, o jogo de Zara e o espelho mutante.<br /></div><div align="justify">Mas nós não devíamos ter uma alma tão guerreira para com nossos caprichos de filosofia, precisávamos um pouco das expressões da normalidade e o jogo não durou por muito tempo. Passáramos a fazer teatro: não era a nós que estavámos vendo, mas outras imagens. Nihil se descrevera de formas malucas e inesperadas, criara tantos personagens dele mesmo que uma regra para o jogo foi inventada: era necessário uma fala que fosse a ligação entre a imagem fictícia do espelho, refletida somente por palavras, e o nosso eu real. Essa linha imaginária passou a fundir em nossas personalidades estranhas expressões a pairar sobre o que éramos, ou pensávamos ser, e o que não éramos em definitivo. Você se perdeu nisso antes de mim. Dissera, na última noite desse teatro, que estabeleceramos multiplicidades dentro de nós, a realidade versus imagem de fantasia, e que estávamos a arrastar nosso amor para a ficção e, por isso, corríamos o risco de perder nossos sentimentos genuínos um pelo outro, era pura loucura. Um amor perdurado em momentos de imagens falsas? Ora, não era só isso e Nihil sabia que não. Tentei argumentar que todos jogam o amor em fantasias, em seus phármakons particulares para vê-lo sobreviver por mais um tempo e que não coincidiam com o seu dia-a-dia, ao menos nós dois tínhamos consciência disso e nos divertíamos em momentos escolhidos. E depois era menos hipócrita, pois envolvia somente a nós dois. No ir e vir da luz do dia as palavras funcionam como receitas e diagnósticos escritos por outras pessoas, mas quando se tem avidez existencial, e não se sabe onde nem como vivê-la, as palavras acabam funcionando de outra forma. Seu comportamento me recorda Kant, o qual me dá alergia, logo você, Nihil, que o criticara estava agindo ‘como se fosse’, sim, como se fosse discípulo do metódico homem de pijama bordado com seu monograma, vestido-o, provavelmente, sempre no mesmo horário e com os mesmos movimentos. Kant não negou ‘a coisa em si’, simplesmente resolvera não discorrer sobre algo que não se pode conhecer, você se irritava com isso pois considerava uma forma refinada e sutil de negar a metafísica, que era sim uma negação — Kant fora sofista. Então, Karenina, você dissera, não posso falar sobre você pois não posso conhecer sua essência totalmente. Não vejo seu ser, sua essência, seu espírito, ou seja lá o que for, não toco e não sei onde está, então não nego que você exista, simplesmente não falo sobre você. Não é um absurdo? Criticara a frieza de Kant e sua negação da coisa em si que nada mais era do que a Metafísica traduzida na soma de todas ‘as coisas em si’ e acabara agindo com a mesma dose de sutileza para fugir de um simples jogo. Não negara nossas fantasias e nosso imaginário, apenas não queria falar sobre algo que não tínhamos controle. Você também era filósofo, Nihil, não gostava de ficar sem o controle sobre qualquer coisa que fosse e embora amasse o imprevisível e as loucuras que se pode chegar a pensar você precisava se manter dentro de uma certa segurança existencial. Eu começava a não entender o que realmente queria e não queria viver. Começávamos a nos perder demais com o amanhecer. A noite trouxera outro phármakon muito forte para nossas vidas. Estávamos rodeados e mergulhados em muitos deles e você se recusara a continuar viver o amor do phármakon-teatro, expulsando-o metodicamente, ainda acrescentara uma pequena ilação filosófica: adorava a literatura platônica pois ela lembrava um jogo poético de quebra-cabeça com peças invisíveis, no entanto, era insano vivê-la e a brincadeira não fora nada mais do que isso: montar dois mundos numa mesma tela em que as peças tinham imagens mutantes. E que nós próprios havíamos nos convertido em tais peças. E finalizara o assunto dizendo que ainda por cima fora ridículo tal coisa para duas pessoas que seriam capazes de morrer em troca de algumas respostas. Você quis voltar para a realidade e eu me decepcionara.<br /></div><div align="justify">Eu concordava com você, Nihil, fora infantil, mas havia outras coisas por trás de todo aquele jogo ingênuo e você parecia ter esquecido que habitava cada vez mais sua prisão metafísica, pisava a cada noite em um novo líquido procurado insistentemente quando se cansava dos já existentes, parecia ter esquecido que lhe era insuportável a simples terra, o simples andar, o simples respirar — mesmo Kant um dia exercera fascínio sobre seu imaginário. Não sei o que o assustou tanto, perder a linha divisória entre o real e o fictício, talvez. O fato é que se assustara e eu senti que sua sensação de amar não estava mais no mesmo lugar. Eu não tinha a minima idéia para que novos abismos ela seguiria. Então também me assustei<br /></div><div align="justify">Eu quis guiar sua mão e imaginar que sua desordem momentânea de sentimentos era um desespero também imaginário, passaria. Queria colocar essa sensação em você e diante do seu olhar sobre o espelho, mas você foi irredutível. Pensei em jogar sozinha o que seria um absurdo bem maior, não havia graça alguma em que meu eu real fosse o espectador de meu eu imaginário. A loucura não faz sentido quando se está só, se não há uma testemunha com um olhar que se estenda até estranhos atos, então não há loucura, não há nada, Talvez fora esta a razão que levara O Louco a recitar Zara em frente à Antiga Casa, eles não sabem respirar na solidão de suas águas, não tem sentido em ser louco isolado numa ilha com a água limitando a fuga somente sob os olhos de um deus nunca encontrado.<br /></div><div align="justify">Nossa ambição de loucura era maior do que nossa coragem, testemunháramos por pouco tempo um ao outro. Voltamos para as menos perigosas com as quais já estávamos acostumados e que não fugiam ao nosso controle, voltamos a andar pela noite falando e divagando sobre filosofia e às vezes eu lembrava, com um sorriso nos lábios, de sua empolgação inicial naquela noite chuvosa, repetindo entre risadas e gestos engraçados,<br />‘o que me assustou tanto, em meu sonho, que acordei?’<br /></div><div align="justify"><strong><span style="color:#33cc00;">Não estamos a sós em nossas águas — fantasmas, fragmentos e eternos retornos —</span></strong><br />Terraço da Antiga Casa – Os amigos vikings que estavam por ali haviam começado a falar sobre o seu apego às águas dos mares e a magia da noite. Tel também estava por ali, era um autêntico viking, muito alto, com um olhar de suave sedução a nos viciar em seu belo rosto marcado por fortes linhas, as quais nos davam a certeza de ser ele um homem que sucumbira ao seu próprio abismo e sobrevivera a ele. Sim, era esse meu sentimento em relação a Tel, um sentir muito precioso, percebia abismos superados de alguém que conhecera a fundo a si mesmo, tivera esta coragem e se autosuperara transformando suas águas em uma existência diferente. O homem nascido com a marca de Caim fizera dela um andar pelo mundo — real e imaginário — que lhe trouxera plenitude e atos nobres. Ele se transformara em um grande homem, sem dúvida. O amava também, um outro tipo de amor que nunca envolvera uma aproximação além do abstrato. Agora, ele e Nihil, estavam a falar sobre a literatura celta, origem dos vikings, e da importância da noite para seu povo, pois quando os raios do sol começam a diminuir de intensidade, no final da tarde, é chegado o grande instante de cultuar o eterno retorno dos dias através da espera do anoitecer. Cada noite esperada faz reinar o retorno de um novo deus e enquanto a maior parte dos homens adormecem um desses deuses que, nunca repousam durante a escuridão, se prepara para vagar pela noite e despertar intuições a serem concedidas somente dentro da luz de meia-escuridão que desce sobre estes que já entraram em suas águas. Mas, ‘por que, da velha aliança entre a água e a loucura, nasceu um dia, nesse dia, essa barca?’, repete ele, o que estivera escrito em seu barco durante muitos anos enquanto navegara para lugares distantes. Sua frase, seu abismo de homem das águas, transcrito na madeira de um barco que ele insistia em chamar de barca, molhada por águas diversas, era ele mesmo procurando o sentido entre tudo aquilo que acreditava ter valor para si e aquilo que o mundo convencionara como loucura. Se ser noturno era um ato insano, se amar a filosofia era para loucos, se não suportar a luz da normalidade era ser visto com uma espécide de doença contagiosa, se querer conhecer o mal que também habita em nós e possui sua obscura finalidade, se ser fascinado por idéias que navegam há séculos por tantos e tantos lugares estranhos e se havia realmente uma ligação da água com a loucura, como escrevera Foucault, então, ele era um louco, mas um louco que amava tudo isso. Assim, não é uma dádiva amar coisas que a maior parte não dá o mínimo valor enquanto é essa maior parte que finge amar e ser feliz num mundo construído com ilusões de vidas previsíveis? Não é mais nobre navegar sem rumo certo do que andar pela terra percorrendo sempre as mesmas ruas porque o medo de reações diante do que não se conhece é maior do que a coragem de viver? Não é mais encantador habitar seu próprio mundo ainda que para isso seja chegada a hora de destruir todos os outros construídos até então? Ah,Karenina e Nihil, eu sinto uma profunda tristeza por aqueles que só andam na terra, eles possuem suas próprias águas, claro que sim, mas só de olharem para elas ao longe sentem medo, muito medo e lhes dão as costas. Não são honestos com o que amam. Pois amam aquilo que lhes é oferecido, não sabem, dessa forma, o que significa amar algo que se procura obstinadamente. Não sabem qual o sentido de amar alguém quando reconhecemos que no olhar desse alguém existe algo mais do que simples reflexos do mundo em suas retinas. Existe um espírito livre em todos os homens que anseia em se largar ao mar ainda quando em tempestades, turbulências e toda aquela imensidão que nos assusta em alto-mar. Quase todos recusam esse sentimento. Não sabem o quanto isso nos faz amar o universo com uma força que julgávamos inexistente. Eu possuía uma amiga viking que dizia não gostar de pensar seu próprio pensamento, não sabia por onde começar e se irritava com isso, tinha a impressão de que uma grande onda se formaria de repente e ela se afogaria. Passou a vida inteira dando as costas para seu destino, amado e ignorado a um só tempo. Fingia ser feliz. Se ao menos ela gostasse de brincar de felicidade poderia ao menos ser encantador, mas o lance dela era simular sem consciência. Nunca chegaria a ser cética, pois para ser cético é preciso antes ter acreditado com seu próprio sangue em muitas coisas, é preciso ter se sentido traído por todos os deuses que criamos dentro de nós e para estes, sim, é necessário darmos as costas para que não façamos isso conosco. Eu estou muito amargo hoje, desculpem esse meu jeito nietzschiano de filho das águas. Fiquei ali ouvindo tudo aquilo que Tel dissera a ao voltar meus olhos para Nihil senti o quanto eu amava aquele homem, sentado ali na minha frente, vestido todo de preto com um olhar que se perdia em outros mundos inacessíveis a mim. Eu jamais lhe daria as costas, pois eu sabia que muito embora não tivesse navegado tanto quanto Tel, Nihil se reconhecia em todas aquelas palavras e eu o amava mais e mais em cada novo retorno de noites. A morte não é o que falam sobre ela, Nihil, continuou ele, apenas uma longa e bela viagem como dos astros no céu e como as barcas vikings que são queimadas quando seu dono morre. É preciso ter um espírito livre para destruir um mundo e poder habitar outro. Não acredito em outras vidas, só nessa que vivemos aqui, então transformo esse ensinamento de meus ancestrais em um ensinamento para o presente, para o agora, no máximo para o dia de amanhã. Vikings acreditam também que os livros que lemos podem decidir partes do nosso destino, podem nos levar por esta rua ou por aquela seduzidos por imagens repletas de sedução e quando percebemos elas já se apoderaram de nossa existência, estão cravadas de um jeito tão profundo que se torna difícil de expulsá-las — como se comandassem atalhos de nossos destinos. Somos guiados por fábulas fascinantes como ocorre com a filosofia e quando pensamos sobre elas, muitas vezes, é tarde, não queremos largar seu encanto ou elas já tomaram uma dimensão tão grande que temos medo de abandoná-las e cair num vazio imenso, temos medo de olhar para as coisas sob um novo ponto de vista. O medo de seguir dentro de nossa barca pode surgir, como também a recusa pela terra, algo assim como não navegar muito ao longe, sem se diluir no abismo de tais águas, estar entre águas e terras. Já vi muitos amigos vikings ficarem nesse limiar e acabarem se perguntando: onde afinal construi minha montanha? Não se pode permanecer por muito tempo nessa área-limítrofe, com esse sentimento de que o balanço das ondas enjoa e a segurança da terra-firme causa tédio, não se pode morar para sempre em atalhos pois se corre o risco de vir a pensar que a falsa transparência, de tudo o que é aquoso, engana e que o pisar por sobre a falsa solidez da terra pareça uma nova pergunta insolúvel: para onde ainda posso ir? E, depois, concluir: ‘é isso então, a vida?’ É desse jeito que muitos se perdem, nesse limiar onde se torna perigoso permanecer por muito tempo e insuportável, se for para o resto da vida. Muitos não aguentam e acabam abreviando seu destino — querem retornar para onde não há mais retorno, querem ver um sentido infinito na terra, que é finita em seus limites, ou querem, ainda, ver o sentido somente nas águas, nesse vício filosófico — desrespeitando assim o limite com o qual a terra também envolve tais águas. Abreviam seu tempo. Eu, Nihil, e sobretudo Tel, acreditávamos nesse mundo errante, mutante, cigano mesmo, como vikings ao mar, cheio de estrelas que vêm e vão, deuses que também se cansam dos homens e dão um tempo. Noites repletas de mistérios que nosso olhar não alcança, uma outra realidade a se movimentar dentro dos nossos abismos particulares. Então inventávamos metáforas para nos sentirmos confortáveis, especiais talvez. Achava perigoso usar metáforas pois nunca se pode saber quais os caminhos que irão seguir. Por onde podem conduzir um destino que teima em se virar quando ainda não sabe o que um virar de costas significa. Metáforas não eram então mais perigosas do que a própria metafísica? Pois não era delas que a metafísica sempre fora feita? Algumas pessoas nos trazem a sensação de esquecimento e outras acordam nossas metáforas interiores evitando que vejamos naus de loucos apenas como uma existência errante. Quando algo em mim soar como um adeus, minha Karenina, ainda que não seja abstrato eu estarei de frente olhando nos seus olhos e pensando que gostaria que estivesse sempre comigo. E começara a pronunciar coisas sobre como os espíritos livres são ou devem ser: ‘é ter a certeza de que indo para longe nos tornamos prisioneiros de nossa partida, a água faz mais do que levar embora, ela purifica. Além do mais, a navegação entrega o homem à incerteza da sorte: nela, cada um é confiado a seu próprio destino, todo embarque é, potencialmente, o último. É para o outro mundo que parte o louco em sua louca barca; é do outro mundo que ele chega quando desembarca. Essa navegação não faz mais do que devolver, ao longo de uma geografia semi-real, semi-imaginária, o eterno retorno de uma prisão escolhida, a água e a navegação têm realmente esse papel, fechado no navio, de onde não se escapa, o louco é entregue ao rio de mil braços, ao mar de mil caminhos, a essa grande incerteza exterior a tudo. É um prisioneiro no meio da mais livre, da mais aberta das estradas: solidamente acorrentado à infinita encruzilhada, é prisioneiro da passagem. E a terra à qual aportará não é conhecida, assim como não se sabe, quando desembarca, de que terra vem. Sua única verdade e sua pátria são essa extensão estéril entre duas terras que não lhe podem pertencer. É esse parentesco imaginário que da noite dos tempos exigiu e em seguida fixou o rito do embarque. Uma coisa é certa: a água e a loucura estarão ligadas por muito tempo em sonho.'</div><div align="justify"><br />As últimas palavras de Nihil, naquele fim de noite, tinham uma forte dose de Foucault misturadas com as idéias vikings de Tel e com todo o entusiamo por esse mundo maravilhoso, descrito por eles de forma abstrata, mas onde sentíamos, estava ali toda a emoção diante do universo das águas e o respeito pelo limite que a terra nos impõem. Eu sabia que este momento chegaria. Nihil decidira ir embora, queria conhecer o mundo, queria outros abismos. Nós parecíamos não ter muito a dizer um ao outro e, no entanto, nos amávamos. Ele queria viver outras coisas, o mundo é grande, minha Karenina, muito grande. Eu amo você, mas eu preciso ir, eu quero ir, sei que você entende e tudo é mais forte do que eu próprio. Sim, entendia, porque também era o que sentia, mas ela, ao contrário de Nihil, não poderia ir, não agora. Era o pior abismo a ser sentido continuar a amar alguém que não mais poderia ver, tocar, sentir sua respiração e ouvir sua voz, era a mesma coisa que o Nada. Nihil não seria mais o mesmo quando retornasse, mas outro homem, cheio de encantos, mas não mais o Nihil que conhecera. O tempo vivido em outras águas iria mudar o seu amor por ela. Lembrou de sua definição de tristeza profunda, lembrou nitidamente de como conseguira ajudá-lo quando ele estivera muito mal, suas palavras se mostravam agora para ela mesma. Soava em sua mente sua própria voz: não se espera ajuda nesses dias que parecem durar anos, é um mundo impenetrável, não se quer ninguém, atirado na areia num céu com estrelas e tendo o mar diante de você ao som de Wish You Were Here como ainda poderia sentir a dor sem que fosse uma nova sensação? Como não se deixaria levar por algo belo? Você iria levantar da areia úmida e em frente as ondas do mar sob uma noite, ainda que sem estrelas, murmurar somente para si: eu amo a vida, amo tanto que essa dor que eu chamo de profunda tristeza é apenas um outro nome para dizer que por amar demais, além do que meu coração pode suportar, invento palavras diversas, invento outros nomes porque não posso suportar amar tanto, eu morreria se isso não morresse logo dentro de mim, amar muito e, porém saber o quanto tudo é finito, que tudo um dia morre para nós ou para alguém ou para o mundo inteiro. Minhas palavras para Nihil retornavam por sobre meus pensamentos. Naquela hora em que eu estava a amar tanto a vida, o homem que exercera todo esse fascínio sobre mim estava indo embora. Eu não sabia o que pensar, eu continuaria a amá-lo mesmo sabendo que estaria se diluindo em novos abismos que chamávamos de viver intensamente. Ele pegara o violão nessa última noite já de outono e o vira tocar novamente o solo de Wish You Were Here e depois antes de começar a cantar olhou para mim, com aquele olhar que sabemos é de um adeus definitivo e fiquei ali, ouvindo aquela voz rouca, olhando para ele como se Nihil fosse um dos deuses pelos quais nos sentimos traídos, eu sabia que não era nada disso, mas naquele instante eu o vi recitar um hino para uma madrugada de despedida, como se um deus se desculpasse por promessas não cumpridas do seu coração. O seu lindo rosto de alma guerreira e seus dedos tocando naquelas cordas lentamente trouxeram à minha lembrança cenas do que viveramos desde o dia em que vira num amanhecer da Antiga Casa que era para ser como qualquer outro, então lembro do Mourão e do nosso amado Tel, recordo do Louco que ainda ronda a Antiga Casa, dos nossos amigos boêmios, sorumbáticos e vestidos de preto, lembro do mundo todo naquele instante, eu estava profundamente triste.<br />‘Então, então você pensa que consegue distinguir o céu do inferno, céus azuis da dor. Você consegue distinguir um campo verde de um frio trilho de aço? Um sorriso de um véu? Fizeram você trocar seus heróis por fantasmas? Cinzas quentes por árvores? Ar quente por uma brisa fria? Conforto frio por mudança? Somos apenas duas almas perdidas nadando num aquário, ano após ano, correndo sobre este mesmo velho chão. O que encontramos? Os mesmos velhos medos. Wish You Were Here ...’ Sim, Nihil, nós seríamos sempre como estas duas almas, noite após noite, andarilhas sobre a terra tentando superar antigos abismos e sentindo que tudo pode sobreviver por um tempo a mais. Nosso destino seria sempre o de colocarmos valor em nossos mundos imaginários, sem os quais jamais saberíamos continuar a viver. Ainda assim, em toda aquela estranha despedida eu nunca o vira tão feliz. As palavras dessa noite entraram em seu quarto para nunca mais sair. Também no meu. Ficou difícil depois dessa noite. Depois dessa noite eu não sei mais nada. O universo poderia ter se transformado em um ar infinito e ainda assim você só veria água no lugar dele, Nihil. Águas e Montanhas. Nós víamos o mundo de dentro dos nossos aquários, mas cada um retornaria a possuir suas próprias águas, naus de belos e malditos_ crianças proibidas que amam a noite dividindo seus phármakons particulares, dividindo ficções e realidades que se invertiam com o passar de estranhos tempos.<br /></div><div align="justify"><strong><span style="color:#33cc00;">Nunca o vira tão feliz</span></strong><br />Todas as crianças proibidas e malditas amam seus abismos<br />debruçadas por sobre o mar<br />Elas amam também a luz do sol<br />quando se debruçam lá de cima de suas Montanhas<br />E, então, já estão prontas para novamente pisarem por sobre a terra.<br />‘Apenas duas almas perdidas nadando num aquário<br />ano após ano, correndo sobre este mesmo velho chão’.<br />Gostaria que você continuasse aqui.</div><div align="justify">E nada mais. </div><div align="justify"><br /><strong><span style="color:#33cc00;">Anna K. & Antigas e Belas Lembranças de Belos Sentimentos 1999_2000</span></strong></span><a title="" style="mso-footnote-id: ftn1" href="http://www.blogger.com/post-create.g?blogID=6466408#_ftnref1" name="_ftn1"></a><br /><strong><span style="color:#33cc00;"><span style="font-family:trebuchet ms;">1_Parte do Poema do Mourão por Paulo Michelotto.</span><br /></span></strong></div>sandra adria_na fasolohttp://www.blogger.com/profile/10290250930694294016noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-16588935.post-1132536380123323802005-11-20T23:24:00.000-02:002006-01-03T17:28:49.213-02:00Onde?<a href="http://photos1.blogger.com/blogger/7188/1578/1600/adri2.jpg"><img style="FLOAT: left; MARGIN: 0px 10px 10px 0px; CURSOR: hand" alt="" src="http://photos1.blogger.com/blogger/7188/1578/200/adri2.jpg" border="0" /></a><br />Onde?<br /><br />Só Anna é que sabe!sandra adria_na fasolohttp://www.blogger.com/profile/10290250930694294016noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-16588935.post-1130906959273814372005-11-02T02:21:00.000-02:002005-11-02T02:49:19.306-02:00Fragmentos de um manuscrito & outros delírios<div align="justify"><span style="font-family:trebuchet ms;"><strong>Fragmento 1. Quando o amor acaba?</strong><br />Na madrugada, acaba na madrugada.<br /><br /><strong>Fragmento 2. Paradoxal</strong>, há uma madrugada em que se pode sentir que olhar para o outro é como se reconhecer em todas as águas sem se ter pisado em outras areias, sem ter visto se as estrelas que o outro via à noite eram também as nossas, fazendo surgir em nossa imaginação lugares secretos e sedutores. Lugares que nos trariam de volta o fluir de uma imagem: encontrar no mesmo olhar os espaços e tempos desconhecidos que um dia nos foram revelados. Um dia isso morre dentro de nós e não sabemos a razão.<br /><br /><strong>Fragmento 3. Coragem. Medo. Guerra.</strong> Há alguém sempre de guarda contra seus exércitos interiores? Apreensivo sem saber o que eles estão planejando? A dar-se conta apenas quando uma nova guerra inicia? Sem saber de que lado ficar? Então pensa-se: um deles precisa ir embora, precisa, uma longa e cansativa guerra que nos faz oscilar entre amor-ódio, luz-trevas, saúde-doença, noite-dia, tristeza-alegria, calma-turbulência, areias-ondas, terra-céu, navegar-andar. Talvez, conhecer uma alma guerreira, destruísse o que precisasse ser destruído e salvasse o que precisasse ser salvo. Mas a guerra continua. Exércitos vivem ainda dentro do coração. Defesas ensinadas lutarão ainda entre si? Eu gostaria de saber porque um homem de alma nobre permite que exércitos ainda o habitem. Confiar em sua coragem e em sua fraqueza? Eu gostaria muito de saber.<br /><br /><strong>Fragmento 4. Um quadro de paixão</strong> e simplesmente um dia vemos escrito ‘the end’. Deveria haver algo mágico que pudesse manter o amor de duas pessoas por toda uma vida, isto seria maravilhoso. Tão estranho, num dia morreríamos por alguém, no outro não. Como pode tal coisa num sentimento que deveria ser uma exceção? Talvez aí o erro, por pensarmos que é algo especial queremos que tudo que o envolve seja também especial. <em>O lugar mais escuro é sempre debaixo da lâmpada</em>. O algo vivido no presente, no agora de nossa respiração não pode ser vivido em pensamento? então nos perdemos, queremos juntar as duas coisas, mas a luz da lâmpada nos cega.<br /><br /><strong>Fragmento 5. Mas, ainda não.</strong> As divagações privadas soam hoje como exércitos a incomodar: a racionalidade como um olhar cínico; o tempo, com o olhar de coisas que já não fazem sentido; o espaço, diz que algumas coisas são quase impossíveis de serem mudadas e que <em>moiras</em> gostam de aí permanecer: no espaço, pois é daí que elas tiram sua força e seu poder sobre nós.<br /><br /><strong>Fragmento 6. Falta algo para deixar a vida mais densa</strong>, talvez a guerra vivida longe de nós mesmos. Eu preciso soltar minha 'alma guerreira'. Talvez você também. Eu lembro quando você dizia: 'mas não queria te dizer nada disso, pois é meio filosofia e filosofia me parece meia guerra, um certo medo.' Shakespeare disse que onde crescem os amores crescem os medos. Onde o medo cresce, cresce o amor? A filosofia faz meu amor crescer na mesma proporção que o medo, medo de sucumbir à vida, só o que me dá forças é saber que vou sentir você e toda sua sedução em meus lábios. Sinto <strong>falta</strong> de suas mãos apertando minha cintura e me levando até onde você está, você me salva do medo, mas não do amor. Shakespeare estava errado.<br /><br /><strong>Fragmento 7. Então</strong>, não é mais necessário ‘ter um caos dentro de si para dar luz a uma estrela cintilante’? O caos não é mais importante do que o amor? Ainda não consegui fazer nascer esse caos dentro de meu próprio sentir e se há razão em criar no meu imaginário, uma estrela que me desse o caos, teria que, mais tarde, acabar por libertar dele. Que garantias possuímos? Talvez a encontre em algum lugar do Hades ou nas regiões descritas por Dante na Divina Comédia? Sim, mas quanto do Hades já não pisamos aqui mesmo sem saber que o estamos fazendo? Sim, quem poderia saber? Apenas um limiar entre o limbo e o que não conhecemos, pois há sempre um devir em tudo o que habita em nós, assim, para onde eu poderia voltar a olhar depois de ter visto tal estrela?<br /><br /><strong>Fragmento 8. Não sei o que quero ouvir, se ainda quero</strong>. Sei que tenho insônia em demasia. Quisera ter mais, mas tenho que ser normal. Eu me esforço, mas quando minhas forças pedirem ajuda, chegando ao final, quem as substituirá? Eu sim, já me sinto substituída por um algo que me escapa ou talvez seja pelo cansaço que, enfim, o mundo nos impõe com seu aliado, o tempo. Vejo, nos olhos e nas faces, uma desilusão retraída. Em outros tempos se sentiria de outra forma?<br /><br /><strong>Fragmento 9. Disse, há três dias atrás</strong>, que só me compreenderia quando o supra-sensível nos proporcionar tudo o que pretensamente queremos saber aqui. Antes, eu deveria desejar que com a morte eu é que viesse a compreender-me. Morto? Mas quem se encontra morto? Um grande choro? Não, ninguém parte somente para entender o que se passou.<br /> <br /><strong>Fragmento 10. Por que tudo aquilo que pode nos trazer felicidade</strong> antes tem que passar por outros sentimentos contrários? e que, além disso, sem trégua, acabam por destruir os instantes que poderiam ter sido belos? Alternância do mito do sol? Da barca celeste que levava o sol do oriente para o ocidente pelas águas subterrâneas do grande rio Okeanos, fornecendo assim luz e escuridão em uma viagem infinita e circular? Em uma alternância que nos cega e nos vigia, nos embala e anestesia. Quisera eu navegar nesse rio subterrâneo e ser levada pelo seu sopro quente, nenhuma tempestade entre o céu e a terra, caos universal, poderia fornecer tudo que é dado pela imprevisibilidade da delicadeza da imaginação e que a maior parte despreza e tenta viver com a regra do melhor instante: aquele que julgou ser o melhor de toda sua vida impõe o destino para o não-viver e o não-sentir — dos belos instantes.<br /><br /><strong>Fragmento 11. Também o amor</strong>, dizem, é levado dentro da barca celeste e sua natureza tão dualista faz com que o caos retorne. A estrela talvez se sufoque com o seu brilho, com sua luz e afogando-se em si, que cintila, volta à escuridão onde o não-ser não sabe de nada, não sofre e não produz nenhum brilho e, portanto, nenhuma dor. </span></div><div align="justify"><span style="font-family:trebuchet ms;">E eu a queimar inteira no lugar da chama que um dia venceu o caos. E o amor onde está?<br /><br /><strong>Fragmento 12. Começo a crer</strong> em <em>moiras</em> e não quero vir a me comprometer com a felicidade. Querer que não é querer, sem existir não pode ser. Luto por um olhar ou um adeus dos deuses aprendizes. Salvar? Se for amor, sim. Do contrário, aliados à distância, não seremos capazes de sentir a nossa ausência diante da não-presença um do outro. Talvez facilmente substituída. O mundo é tão cheio. Cheio de vontade. De pessoas. De querer e não querer. Tarde, já tarde.<br /><br /><strong>Fragmento 13. Quando meu pai morrer </strong>sua alma ficará comigo ou com o meu irmão? Ou com nenhum dos dois? Se ficará? E por que razão ficaria? Então penso no meu diário. Só tem atrapalhado minha vida, a cada vez que a pessoa que pensei amar o abre. Melhor seria não ter memórias? Quando abro os diários dele penso que sim, suas memórias me entristecem, eu não estava lá e vejo agora somente palavras. Quem dera pudesse ler a verdade dos seus sentimentos e os sonhos que teve e os que não teve. Vejo o aparente, nunca a conhecer o que já foi. Memórias e diários, bom tê-los. Triste também. Então percebo como tudo isso é passageiro e sem importância, mas minha alma acha que memórias e diários têm muita importância mesmo. E eu sofro por ela pensar assim. Que relação há entre meu pai e diários? Memórias, sim, talvez as memórias que ambos carregam consigo.<br /><br /><strong>Fragmento 14. O que é a nossa vida?</strong> Conflitos o tempo inteiro. O que poderia ser maior do que isto? Não há filosofia ou literatura que possam ser maiores do que esta experiência, creio eu. Existe algo que não compreendemos e que sempre será maior do que tudo, será sempre o que lembraremos quando, num dia qualquer e sem importância para a continuidade do mundo, viver se resumir a lembrança do que foi feito de nossas vidas. Manhã quente e gélida.<br /><br /><strong>Fragmento 15. Se tenho um desejo ilimitado de ser amada?</strong> Não, apenas de ser livre para amar e não estar presa à realidade das coisas. A realidade, sim, tão incômoda, não é o que eu gostaria de viver. Mas o mundo é um só. Não posso transportar-me para outro lugar a não ser para dentro de mim mesma. Também não consigo viver lá fora, não é real para mim, mas a realidade tem suas exigências como o fato de não aceitar conciliar o que dela não nasceu. Onde está minha morada?<br /><br /><strong>Fragmento 16. Ainda procuro pelo devir subterrâneo</strong>, pois não quero perguntar porque o tédio se instalou e então a tristeza veio a me absorver, diante de um sábado em que nada muda. Nada muda.<br /> <br /><strong>Fragmento 17. Os hinos que me embalaram a estar só</strong> provinham de uma única voz, de um mesmo apelo, de um só lugar. Rendia-me a eles ‘every day’ — a eles, só a eles e ao seu balanço de choro contido, como se da esperança sobrasse um sussurro, ainda uma palavra, também dos hinos. Era assim. Então, e nada mais, era assim. Por que estar só é como chover sobre uma cidade em ruínas. Mas não é tudo, quando somente a metade é que se faz estar. Tudo, que é metade. Nada há que terminar. No meio se desiste? Ou depois da primeira vitória, quando se foge covardemente? Hoje, só o que ele faz me preocupa, um quê de algo sempre escondido. Pensamentos a trabalharem sem parar em busca do que se ocultou por detrás de tantos ‘quês’. Se, ao menos, o que ele sente corresse por alguns segundos nas minhas veias, eu teria certeza que sente o que eu gostaria que sentisse, para sempre, ‘everyday’, e eu não precisaria mais render-me aos hinos. Ou a mim.<br /><br /><strong>Fragmento 18. Estou cansada de grandes idéias a serem narradas</strong>, quando no mundo, tudo já foi dito. Estou cansada de escrever sempre o mesmo, quando na alma reza-se pelo não dito. Entre o cansaço de tudo isso, carrego no corpo o dito e o escrito, o mal e o bem, e o nada que sempre fito.<br /><br /><strong>Fragmento 19. Digo que o outono nasce</strong>, enquanto o verão está a surgir, porque gosto do outono. Minto que nasce, para mim então é isso. Nasce o outono. Nasce a insônia entre o ciclo constante da inconstância que sou. Velhas páginas decoradas já não preenchem meu vazio. Elas mudaram com o tempo? Tudo me é fraco e sem sentido. Tudo serve para alguém. Fernando Pessoa aquece meu frio no verão que chamo de outono. Ele, que descobriu a verdadeira metafísica, tem sua lápide nos claustros do grande mosteiro. Ele, que a tantos dá sentido, rodeou-se da esterilidade do espaço. Respire ao lado de seu túmulo e sentirá o ar insípido. No entanto, rezei a ele, em pé, por um caminho que possa libertar-me ou conduzir-me em definitivo ao caos que quero viver. Expressão de tristeza pessoana? Mas tenho ouvido muitos reclamarem que desde que Pessoa se foi muita coisa passou a sumir da terra e que todos nascem tão iguais que ele faz realmente muita falta. Quisera eu também ser feliz no mundo em que acredito. Saudades de alguém que não conheci.<br /><br /><strong>Fragmento 20. Só pode restar um tipo de consciência</strong>: a de que tudo é possível a qualquer momento e seu inverso também é verdadeiro, pois diante da não-possibilidade de acontecer existe a possibilidade de que aconteça, ainda que depositemos aí uma falsa e ilusória angústia. Nascer uma vez mais para a impossibilidade de algo diante das inúmeras possibilidades que o mundo nos abre e que não são exatamente aquelas que queremos vivenciar. A angústia nasce da impotência de que não se pode contrariar o destino que nos cabe. Qual destino?<br /><br /><strong>Fragmento 21. Não pretendo evocar o passado</strong>, apenas bater em sua porta amarelada e de pintura envelhecida.<br /><br /><strong>Fragmento 23. Todos os meus desesperos</strong> têm uma data marcada: amanhã. Meus sonhos esvaziaram-se. Minha alma também. O que posso esperar de um sossego tão intenso? Sinto dor física no abdômen. É bom saber de onde vem a dor e que ela vai passar, vai passar. A outra, não passa nunca e não sei de onde vem, e assim continuo os meus dias. O dia hoje está parado, parece que as pessoas o esqueceram, o mundo morreu e eu não vi. Os outros viram.<br /><br /><strong>Fragmento 24. Naquela noite</strong>, senti a estrela da qual Nietzshe falava pulsar nos meus pensamentos. Percebi que ninguém preencherá a dor do meu vazio. Como algo que um dia sentimos com tanta intensidade pode sumir e por quê? Eu não soube diferenciar angústia do amor que julgava desaparecer? Percebo, não sem a dor, que o caos é apenas um mal-estar a doer no centro do meu peito, na garganta e a alastrar-se como uma peste. Já não o controlo, mas hoje sei o que é capaz de fazer comigo. Não quero aceitar meu imaginário e então é como se eu cometesse um assassinato comigo mesma. Preciso matar isto que vive em mim? Preciso matar uma parte da qual sou feita? Domingo de sol, de chuva e de frio, como eu, domingo de dor e de descobertas. Domingo, hora de deixar-me. Hora difícil não-ser mais eu — e no entanto amo esse imaginário que habita em mim.<br /><br /><strong>Fragmento 25. Preciso de presenças?</strong> Já não sei do que preciso. Chorar é bom. Crer também. Como dar de presente à pessoa que se ama um permanente desespero? Eu sei que um dia eu vou mudar e até achar legal a normalidade do mundo, as cores do tapete e o cheiro do amaciante na roupa recém-lavada. Dizem que a angústia costuma nos visitar durante uma estação e depois, demora para voltar. Angústia minha não diferencia as quatro estações, indiferente_ para ela o ano inteiro é primavera. Em qual delas a estrela cintilante é visível na escuridão do céu?<br /><br /><strong>Fragmento 26. Antes eu pensava</strong> que se quisesse viver meus sentimentos verdadeiros — todos eles — teria que viver os meus medos e também o desespero. Há o vento lá fora. Outras coisas aqui dentro, onde estou sentada, escrevendo. E há também a consciência de que sou feita de sentimentos dos quais não preciso. As coisas que mais precisamos são completamente silenciosas, delas nada sabemos: inconsciente, imaginário, sonhos. E todos estes silêncios provocam um novo e grande silêncio dentro de mim, sobre o qual também nada sei. Noites escuras silenciam e todos um dia silenciarão.<br /><br /><strong>Fragmento 27. Gostaria de ter mantido a ilusão do amor</strong>. Quebrou-se em tão curto espaço de tempo. O encanto disso se foi e tudo recai sobre mim novamente. Outra história me aguardará? Histórias podem salvar. Em sua essência podem ou não quebrar o encanto.<br /><br /><strong>Fragmento 28. Sonhei com as partituras</strong> de uma música melancólica como se fosse o Réquiem de Mozart, às vésperas da tristeza certa. Depois, esta música transformou-se em Carmina Burana, a misturar-se com um conto, e novamente as partituras. Perguntou-me o que eu pensava do conto sobre a tristeza que ali estava. Eu disse que, caso tivesse sido eu a escrevê-lo, tentaria explicar as sensações de quando começara a intercalar partituras com palavras. Sim, faltava algo, talvez a verdadeira transição dos sentimentos para as palavras. Das palavras para a música. E da música para as vésperas da tristeza certa.<br /><br /><strong>Fragmento 29. Estou em outro lugar</strong>, num lago de águas verdes-acinzentadas e turvas, com sons contínuos e baixos próximos à margem, barulhos que posso escutar. Da margem eu aceno, não sei se quero voltar. Permaneço no lago. Hoje, quando anoiteceu, eu dei um passo. As águas não se mexeram, estão esperando meu próximo movimento. Nas águas, uma verdade e tudo e na margem também.<br /><br /><strong>Fragmento 30. Quanto tempo levarei para chegar até onde quero ir?</strong> Será que ainda estará lá o que quero? E se não estiver, o que eu faço? Volto ou não para o meio das águas?<br /><br /><strong>Fragmento 31. Quando estamos tristes nossas raízes nos traem?</strong> Vem à tona o queremos dissimular? Mas onde estão minhas raízes se ainda moro na mesma casa? Se tudo em mim fosse dissimulação, como eu ousaria falar em raízes?<br /> <br /><strong>Fragmento 32. Saber se identificar num mar de nomes?</strong> Mas como fazer isso quando é a chuva que tomba do céu? caindo no mar turbulento que nos foi dado, como então se identificar num abismo que tomba há séculos enquanto a Noite nos nega a estação que dura o ano inteiro?<br /> <br /><strong>Fragmento 33. Inverter prioridades</strong> tidas como absolutas e deixar pré-conceitos para um outro dia. Será que pode dar certo? Coloca em risco a estrutura de vida que se estabeleceu? Troca-se os pré-conceitos pelos pré-receios?<br /><br /><strong>Fragmento 34. O Bem, sentimento?</strong> Preocupei-me vários dias em como o poderia viver. Preocupei-me demais. Padronizei a forma de pensar e agir. Sem quebrar o estabelecido foi chato, sem graça, morri por alguns dias. Prefiro o Bem de outras formas.<br /><br /><strong>Fragmento 35. Adoro esquemas sacros.</strong> Não consigo entendê-los. Nos dão uma garantia de nossos loucos atos de ceticismo, silenciosamente. As belas estátuas que nos miram sem pedir decifração. E nós?<br /><br /><strong>Fragmento 36. Crises, sim, de todos os tipos</strong>, já as tive, afetivas, existenciais, e, então, a Filosofia. Sinto-me tão incomodada há tanto tempo, e há muitos meses sem re-ação, o que me leva a crer que crises não são temporárias. A re-ação, apenas uma síntese sobre o que está a incomodar, somente isto.<br /><br /><strong>Fragmento 37. Hoje vi, pela primeira vez</strong>, o portão aberto. Sair ou não sair? Permaneci. Se o portão inventasse de fechar, com uma brisa ou uma tempestade, eu sairia rápido. Estou observando. Penso que há algo mais.<br /><br /><strong>Fragmento 38. Antigos manuscritos para novos sentimentos?</strong> Sei que durmo. Nessa noite, repouso em meu leito. Toca o telefone e não respondo. Durmo em meu quarto. A dor da perda transforma, sabemos. Longe, pergunto se estará com dor. Não tenho como saber. Como se viajasse sem dar notícias. Existe dor maior? Da incerteza de uma dor que não a nossa?<br /> <br /><strong>Fragmento 39. Possuímos formas diferentes de dar atenção</strong>. E eu, que escrevo isso, não compreendo o que seja isso. É possível produzir muita coisa sem entender nenhuma delas. Dividir com quem?<br /><br /><strong>Fragmento 40. Deus, à diferença do homem</strong>, não tem necessidade de amigos, a causa disso é que para nós o bem vem de algo que não somos nós, mas Ele é para si mesmo o seu bem. Sinto-me deus ou o mal habita em mim. Nunca me sinto satisfeita com o bem que conquisto, sempre quero outro e mais outro. O conceito não está certo. Perdi-o no caminho.<br /><br /><strong>Fragmento 41. Quando o trato bem, comove-se.</strong> Não está preparado? Deveria ser o contrário. Eu o assusto quando sou normal? Dura pouco.<br /><strong><br />Fragmento 42. País estranho</strong> este que habitamos exclusivamente com outra pessoa. As coisas criam uma dimensão mais definida e maior, bem maior do que antes. Lá fora tudo parece bem calmo.<br /><br /><strong>Fragmento 43. A minha preciosa independência emocional</strong>. Criei laços de afetividade fortes com ele. E agora sofro com intensidade, não sei o que fazer com isto. Independência emocional. E o que é ser dependente de alguém? Ver os pensamentos, assim, no papel, congela, nos torna mais cruéis do podemos ser, a dimensão do sentido passou por mais uma das sensações: nosso olhar sobre as palavras. Mas não preciso explicar nada aos meus olhos, graças a Deus. Bom quando não se precisa explicar nada. Explicações complicam, implica o que você pensou, o que disse, na forma que disse, o que foi interpretado, em que sentido, como, por quê. Distante, muito distante. Explicações não tem sentido de ser. Vagas, muito vagas, erro de percurso, esquecer, melhor assim, não ver, não esperar e desenvolver-se, contrário a envolver-se. Melhor calar.<br /><br /><strong>Fragmento 44. Escolho racionalmente</strong> a quem dedicar minha afetividade? Se assim o faço, não sou afetiva pura e simplesmente e, sim, racional e levemente interessada em algum tipo indefinido de algo a que deram o nome de afetividade. Ser afetivo com quem: ou o ser-afetivo faz parte do nosso ser ou não o faz. Mas, o que se pode fazer com a afetividade que não se quer sentir? Sublimá-la?<br /><br /><strong>Fragmento 45. Há os que pensam que existe glamour na depressão.</strong> São aqueles que vêem este mundo particular do lado de fora_ só observam e nada mais.<br /><br /><strong>Fragmento 46. Hoje a realidade</strong> pareceu-me interessante, bela. Mais do que isso, prestei atenção às pessoas. Ainda não observo o que vestem, seus calçados, saias ou gravatas, mas já ouço suas vozes reais e as palavras me soam diferente e estão distante de mim e do papel. Nenhum sentimento triste me incomoda hoje. Nada interfere no que sou, sinto-me entorpecida ou anestesiada, não saberia dizer. Morri?<br /><br />Fragmento 47. Acordei pensando sobre o fato do inconsciente existir mesmo ou não. Ser apenas ficção, afinal, o ponto de partida de Freud. Terei perdido tanto tempo em compreender-me, em ler meu inconsciente, que é provável que eu ficasse triste. Algo como ser traída pela humanidade que inventou de fazer ficção dentro de mim, dentro de cada um de nós, nos induzindo a uma concepção de alma falseadora de tudo o que somos. E nada mais resta no mundo senão a ficção dos livros e do inconsciente?<br /><br />Fragmento 48. Maldito inconsciente, se existe, guarda tudo sobre nós sem trégua. E guarda para um esquecimento que se faz lembrar sutilmente. Fizesse algum ruído seria mais fácil. Nenhuma pista. Nada. Quanta elegância. Faz metáforas o tempo todo. Tenho mais o que fazer.<br /><br />Fragmento 49. Tenho medo. Medo do meu sentir. Das poucas reações das quais sou capaz. Não sei de nada. Só sei da minha instabilidade de sentimentos. Como posso exigir de mim sentir a mesma coisa daqui a duas horas que sejam? E o que é sentir a mesma coisa? É possível?<br /><br />Fragmento 50. Quando conheci o mundo real, fazia muito frio, pingos fortes caíam do céu sem parar. Nasci num dia assim. Sou o dia em que nasci.<br /><br />Fragmento 51. Os sonhos? Bem, os sonhos são a desordem dos pensamentos enquanto descansamos. Nada mais do que brincadeiras do repouso. Uns brincam demais, outros nada.<br /> <br />Fragmento 52. Por que Deus nos deixa viver tanto tempo com tantas incertezas? Ou ele não existe ou ele sonha como nós.<br /><br />Fragmento 53. As palavras, o que são exatamente as palavras? Aquilo que um dia vi, mais as sensações de quando vi ou de quando estive a lembrar? E, dessa maneira, passo as sensações que são minhas para as palavras. Ainda assim, pergunto-me o que são elas, além de confirmarem o que senti e o que não senti.<br /><br />Fragmento 54. Meu sentir é algo só meu. Ninguém poderá senti-lo. Talvez algum dia, não sei. Por enquanto me pertence. Algum dia, expressão de esperança e momentâneo desalento, algum dia, quem sabe, as coisas possam ser diferentes.<br /><br />Fragmento 55. Diz o existencialismo que a existência precede a essência. O homem será antes de mais nada o que tiver projetado ser. Ou seja, como não há determinismo na essência e esta se faz durante a existência, o homem tem condições de fazer sua história, de mudar o curso do destino. Mas eu não sei se as mudanças que ocorreram na minha vida partiram de minha essência ou de minha existência que se fez essência naquele dado momento em que algo mudou. Como saber a linha que demarca o que é e o que não é? O que foi feito e o que não foi?<br /><br />Fragmento 56. Reclamou do meu estado linear. Antes, eu alternava o humor de minuto a minuto, agora não. Preciso me acostumar com tanta linearidade e boa paz. Eu mesma me sinto entediada com minha linearidade. Não suporto pessoas assim, tão estáveis emocionalmente, previsíveis, sem graça. E estou ficando igual, sem vida. Não há coisa pior do que pessoas lineares.<br /><br />Fragmento 57. Pode a depressão virar um tédio total? Na verdade, dois infernos: o tédio natural não tem cura; a depressão também não, mas pode ser tratada. O segundo grupo pode ser mais interessante, pode-se eventualmente experimentar o tédio quando nos sentimos vencidos pela angústia. O tédio, afinal, é como um sono longo e cheio de torpor. Estou torporizada.<br /><br />Fragmento 58. Adoro a chuva, as trovoadas, o escuro que se faz, o vento frio que balança as árvores. Todos se recolhem e o mundo então pertence à chuva. As pessoas se escondem, fecham-se em suas casas e em si mesmas. A chuva se apodera de tudo. Se dilue para depois sumir completamente. E o resto?<br /><br />Fragmento 59. Ele era freudiano, não acreditava na imortalidade da alma, apenas no eterno retorno dos sonhos. Parece que só eu me desespero com o fato de que as pessoas que mais amo não existirão um dia. Vivem como se fossem imortais e isso não interfere em suas vidas, na minha sim. Na infância já era assim, só que eu não sabia que as coisas vividas na infância reforçam-se com o passar do tempo. Penso que agora é tarde.<br /><br />Fragmento 60. Pensei em chorar. É, deu tempo para pensar em chorar. No entanto, senti que as lágrimas cairiam no fino tecido da minha blusa e secariam em seguida. O que restaria dessa noite? Uma vaga memória perdida no tempo. Existem formas diferentes de dizer a si próprio que algo está sendo produzido em demasia dentro da alma, não como lágrimas que evaporam em finos tecidos, pois o chorar em si não contém diferenças. Não se tem como criar uma lágrima que ao cair vire uma mancha artística. Impossível transformá-la em obra de arte e, no entanto, concedida não é mais do que poderia ser.<br /><br />Fragmento 61. Não queria dar tanta importância às palavras, tinha receio que não sobrasse nem ao menos um roçar delicado e infantil para o silêncio. O silêncio existe e é tão solto, a ser feito de areia entre os dedos ou de lágrimas contidas. Quando não-contidas levam um pouco da dor para longe do corpo. A ilusão se desmancha quando tudo retorna a uma razão para se fazerem vistas. Eu não olho para elas. Corpo estranho que se move. Silenciosas e lentas. Muito lentas, a crescerem e a se reproduzirem muito, muito lentamente.<br /><br />Fragmento 62. Impressionante como os momentos de lucidez são dolorosos. Hoje senti minha voz quase num sussurro e movimentos ausentes. Era a lucidez e agora não sei o que fazer. Não é terrível não saber o que fazer? Pois eu não sei o que fazer, espero que seja temporário como lágrimas e coisas assim.<br /><br />Fragmento 63. Reclamo da falta de liberdade. Virei escrava de meu próprio pensamento. Penso nas imagens, nas palavras, não sobra mais espaço. Gostaria de pensar quando eu quisesse, mas não, o quando quisesse ocupa o tempo todo. É dessa pequena liberdade da qual falo. Está dentro de mim e não tem nada a ver com a vida exterior. Tudo dentro de nós, nada além, o exterior se forma e se distorce.<br /><br />Fragmento 64. A vida lá fora é uma escultura moldada constantemente pelos nossos olhos e pelas nossas sensações. Escultura onde cabem todas as formas e cores, feita de tempo e de ausência.<br /><br />Fragmento 65. Estou mais afetiva com o mundo. Mas, na maioria das vezes, só consigo enxergar meu próprio pensar. Às vezes, recordo a personagem da Hora da estrela, de CL, ‘incompetente para a vida’. Aliás, Fernando Pessoa já tinha dito isso. Todos dizem coisas já ditas alguma vez em algum lugar, porém com alguma diferenciação, o que torna, sem dúvida, tudo levemente novo e genial. Não em sua essência, é claro, mas as idéias são sempre as mesmas. Fico pensando na Macabéa, onde e como um ser humano, ‘incompetente para a vida’, poderia vir a se tornar competente para outra coisa? Para ‘isso’. E o que é ‘isso’? Isso é o isso que o Freud transformou em id e depois em inconsciente. De novo ele, o inconsciente.<br /><br />Fragmento 66. Li, em Samuel Rawet, sobre as pessoas paranóicas. Elas completam atitudes, frases, gestos e olhares de outras pessoa, dentro de suas mentes. Passamos a vida inteira achando isso, pensando aquilo, que todos afinal são um pouco paranóicos. Qual o limite de ser saudável e de se estar pisando no primeiro degrau da paranóia? Difícil dizer, melhor classificar o ser humano como sendo paranóico e pronto.<br /><br />Fragmento 67. Penso em dormir e em sonho voltar para um lugar perdido nas minhas memórias, mas os temores me invadem. Como seria bom não pensar em dormir, não sonhar, não voltar.<br /><br />Fragmento 68. Tudo o que eu quis dizer foi o seguinte: a euforia não foi em direção ao vazio. Assusta sentir estabilidade interior pela primeira vez, pergunto-me se será para sempre. O para sempre existe? A vida é muito estranha. Não sei se é ela ou se somos nós a conspirar contra nós mesmos, a aproveitar qualquer frase mal elaborada para por tudo a perder. Ainda assim, vejo que não me bastaria somente o que eu poderia ver, duraria pouco. Seria frágil. Apenas uma tentativa de alcançar algo que, de certa forma, ele não teria dentro de si. Impossível. Eu estaria enganada.<br /><br />Fragmento 69. Caminho de sempre. Passos nem receosos, nem deixando de sê-lo. Nada tinha para dizer-me, além de observar o suor que grudava nas roupas do meu corpo, jogando minha alma doentia para longe, como se o horizonte existisse longe disso. Mas do que pode ser feito um horizonte que não se enxerga? O que faz um cigano quando é deposto? Será que ele deixaria que eu molhasse os meus pés na madeira úmida e salgada? Precisaria ancorar a mim mesma até que resolvesse partir em busca de passos não-receosos. Será preciso ir tão longe de você mesmo para enfrentar uma odisséia? Não somos nós mesmos a nossa própria? Tão grande em nossa montanha particular e quase inacessível aos outros? Mas eis que já tocava a minha, suavemente, enquanto ainda nenhuma montanha esperava Zaratustra.<br /><br />Fragmento 70. Não é durante à noite que as cidades e os reinos sucumbem? Será que é à noite, também, que os sentimentos refluem sobre si mesmos temperando tudo num só corpo de mesmo corpo?<br /><br />Fragmento 71. Como são os horizontes que nunca viu? Conseguirá ainda viver em você mesmo sem pensar neles? O que faz um homem de ‘alma guerreira’ quando deixa de sê-lo? Você vai deixar que eu molhe meus pés na maderia molhada pelo mar que abrigou o barco que o trará de volta para mim? Estou cansada de ancorar a mim mesma num lugar, que eu sei, sem porto. Quando você retorna?<br /><br />Fragmento 72. Noite de des-tecer a tela que fiz durante o dia. Não é durante à noite que devemos vigiar quem somos?<br /><br />Fragmento 73. Angustia-me o universal que também serei, que um dia não mais se olhará no espelho. Sim, chega, chega dessa estampa falsa, então direi. Melhor olhar para si, sem ver-se concretamente, carregar a alma com seus vícios e distribuí-los para que a consciência do que acumulamos não nos engane. Quero todos eles estampados a minha frente, gritando que são meus. Vícios meus e tudo o mais que empurrei para dentro de mim sem saber ao certo que aumentariam o que não quis ser. Meu coração sente. Eu sinto.<br /><br />Fragmento 74. Estou escrevendo deitada entre cobertores e travesseiros pesados. Não há nada feito de suaves penas de ganso por aqui. Também nenhum que eu tivesse usado na infância. Envelheceram mais rápido do que eu ou minha avó. O quarto era dela. Envelheceu e morreu. Não parece que dormia aqui. Cigarro no bidê ao lado, permito-me fumar no quarto. Ela gostava de cantar no escuro. Eu não canto. Gosto de luz artificial. Gosto do quarto. Apago o cigarro, a luz não.<br /><br />Fragmento 75. A única certeza é essa dor de que algo se perdeu. Sei que não voltará. Como faz tempo. O tempo da infância parece uma outra vida, de outra pessoa, olhamos para trás e sentimos não ter sobrado muito. Negamos nossa ingenuidade diante do mundo, e isto é bom. Então, negamos a infância e a falta de clareza que a ingenuidade nos obriga a viver. Na infância somos seres livres, apesar da ingenuidade?<br /><br />Fragmento 76. As dores mais profundas são as universais, aquelas que todos poderão sentir. Quem irá amenizar a dor? Ninguém, pois por ser universal é que é assim. Independente de tempo, de Anaïs Nin ou de qualquer coisa classificada como loucura. Eu aqui. Ele lá, distante. Também universal. Porém, sem dor.<br /><br />Fragmento 77. Descubro hoje que o único espaço que era dele converteu-se no sofá estampado da sala, mais o monitor do vídeo da televisão. Um sonho se mistura a isto, duas pessoas dormem num quarto, outras duas limpam a casa, é madrugada, amanhecerá e o sonho terá sido sonhado. Termino de ler Henry, June e eu, da Anaïs Nin e descubro também que tudo foi menor do que pensei ter vivido. Percebo, com aquela tristeza que torna tudo reducionista, que a realidade foi normal e que a loucura, imaginária. Tudo que vivi foi mais intenso dentro da minha mente do que para o mundo de outros que continuaram a circular, sem exigir exageros do seu próprio imaginário. E esta tristeza reducionista, talvez todas sejam, diz ao meu tempo interno que duas pessoas, ou mais, ainda dormem no quarto ao lado e que é madrugada, que será ainda por um longo tempo.<br /><br />Fragmento 78. A imaginação não é um estado, é a própria existência humana, William Blake. Não possuo um estado imaginário, já que não estou num estado de imaginação. Seria preciso estar dentro-de, para que fosse possível nos constituirmos de qualquer estado que seja. Não estou dentro de minha própria imaginação, senão que sou a própria imaginação, pois a condição de existência humana é que me afoga na ação imaginária, aliás, a única ação que conheço verdadeiramente.<br /><br />Fragmento 79. Já morei em diversas cidades. Sempre volto para visitar meus pais. Cidade pequena, pessoas vivendo devagar. Não é campo, mas é como se fosse. E como é triste quando o sol se põe, tem-se a impressão que o tempo esquece que existe. O tempo deixa de existir em lugares assim, deprime. Tempo parado, assemelha-se à morte, sem movimento. Quando o sol se põe, faz a morte existir. E as pessoas continuam a respirar pausadamente, não importando que assim seja. Mas eu me importo. Venho de fora. Sinto-me deprimida. Prefiro a correria da cidade grande. Bastante movimento, vida, muita vida. Será mesmo isso, vida, que pensamos sentir com as luzes e os movimentos de um lugar que nunca dorme?<br /><br />Fragmento 80. Ser menos exigente para se demonstrar mais o amor que se possui. Trata-se de exigência que se carrega, espontânea. A espontaneidade tem muito valor, foge a neuroses e ao controle de nossas atitudes tão bem construídas, também foge às defesas do nosso inconsciente revelando como se manifesta no seu exterior do interior a que foi confinado e a que nos confina. Como ele não deve aparecer, logo nos recuperamos dessa doença — a espontaneidade — e ignorando-a esperamos que não cause mais problemas existenciais. Fora com isto, viva o autocontrole e o inconsciente.<br /><br />Fragmento 81. As coisas que vemos nada podem fazer por nós. Instantes elevados de admiração. E depois, voltamos a nós.<br /><br />Fragmento 82. O espírito livre é aquele que não está a amar ou apaixonado. Do contrário, não livre, sartreanamente que seja, apega-se a pequenas coisas. Ouvi alguém dizer que o mundo seria manso se não houvesse o amor. Talvez manso demais.<br /> <br />Fragmento 83. Como é um ser humano que não ama as palavras ou a metafísica? O que amamos realmente?<br /><br />Fragmento 84. Não agüento me sentir vazia. Pego um livro. Sinto-me só. Os personagens não sabem que eu existo e que estou a ver-lhes a vida e os sentimentos. Sinto-me uma intrusa. Continuo a ler e a conhecê-las a cada linha um pouco mais. Elas continuam sem saber que estou aqui. Termino o livro, elas se foram, não pude dizer nem ao menos quem sou, o que pensei sobre elas. Nunca saberão que estive entre suas vidas, se chorei, se não chorei. De que adiantaria? Estão confinados às palavras.<br /><br />Fragmento 85. Se escrevo? Sim. Invento rostos que não existem, olhos que em verdade nada vêem. Vidas com sentimentos e sem sentimentos, que não são vidas. As personagens nada sabem do que sentem. Eu crio suas almas pela metade e para momentos. Elas aceitam, choram, amam e morrem pairando no ar sem terem existido, só com palavras. Mas eu não sou só palavras. Invento seres que são só isso. Palavras.<br /><br />Fragmento 86. E talvez alguém crie nossa existência através de um belo texto. E, como nossas personagens, vivendo as palavras e a idéia pré-concebida, vamos nos transformando em algo mais do que o texto, do que as simples palavras. Será que alguém está lendo minha história em voz alta enquanto estou a viver? Engraçado, não faz pausa para um café ou uma cigarrilha de cor sépia. No meu texto, não há pontuação, fluxo de consciência ininterrupto.<br /><br />Fragmento 87. Hoje sinto a leveza da angústia como se tivesse morrido e, no entanto, continuasse a viver. A paz traz consigo a beleza de algo eterno. Sinto-me viva com um sentimento que se assemelha à morte. Quem sabe é o Vivaldi que toca ao lado? Quem sabe é ele que dorme no quarto? Quem sabe sou eu sentindo que o eu não sou? A paz é para ser deixada em paz e para nada se fazer com ela; Vivaldi para ser escutado, ele, para ser amado. Sim, eu sei e ele dorme.<br /> <br />Fragmento 88. Tudo parece invertido, finjo que não, mais fácil brincar de certezas e cegar os olhos. Difícil convencer a vida a olhar para onde quero. Tenho tanto medo da ausência da metafísica. Eu sei, não serve para nada, não é pragmática, mas o desespero de ensaiar este sentimento é suficiente para que eu me angustie diante da possibilidade. Crer na metafísica é crer na incerteza do que não vemos. O mundo me cega diante de tanta claridade e eu me apoio na desculpa de todos, estou diante do sol e tudo me basta para viver.<br /><br />Fragmento 89. Nenhum sentimento meu resistiu tanto a se deixar destruir por problemas imaginários. Significa algo? Sim, do contrário, seria fácil abreviar algumas situações. Mas este não é o caminho, talvez os budistas estejam certos, o caminho é o do meio, aquele que relutamos em tomar por ser o mais estranho e desconhecido. Evitamos o que não conhecemos, porque nos acostumamos a pensar que junto com o desconhecido existe a dor lado a lado. Nunca escolhemos este caminho e quem sabe quem o escolhe é que consegue ser feliz.<br /> <br />Fragmento 90. Quando estamos a minar o nosso pensamento? Quando não estamos a nos comportar como mandam os manuais? Não podemos permitir que preponderem sobre todo o resto. Nosso comportamento, sim, o comportamento.<br /><br />Fragmento 91. Eu lia Fernando Pessoa e Goethe, pois eles faziam com que eu sentisse um certo conforto existencial. Eles sentiram o mundo - as dores do nosso mundo - com tanta intensidade que a minha dor não era quase nada. Eu podia, então, sentir uma proximidade com a minha própria dor. Uma proximidade que só a filosofia e a literatura podem infiltrar dentro de nós. Agradeço por terem existido.<br /><br />Fragmento 92. A verdade é o que importa, mesmo que transitória, afinal todas são, não há como viver sem elas. Peço desculpas pelas idéias sem lógica, fluxo de consciência às vezes funciona melhor. Alguns meses atrás dei-me o direito de desencadear uma dor a mais. Agora, quero salvar-me de dores a mais.<br /><br />Fragmento 93. Quando não conseguimos viver com segredos, também não conseguimos compreender como alguém consegue viver com eles. Eu não sei viver com segredos. Quando, na despedida, ouvi: ‘o ar não se enxerga, se você quisesse ver o ar, não iria dar um jeito de ver este ar?’ E eu respondi: sim, se eu quisesse saber da existência do ar tentaria vê-lo de um jeito ou de outro. Mas supondo que depois de procurá-lo, passasse pelos meus pensamentos que este ar pudesse transformar-se em fogo, talvez eu desistisse, não ia querer me queimar. Shakespeare talvez tenha razão, ‘a consciência torna a todos covardes’.<br /><br />Fragmento 94. Às vezes, eu tinha a sensação de que possuía uma alma tão distante de si próprio que quando eu olhava de uma forma mais demorada ficava me perguntando: onde está aquele para quem a pouco eu estava a olhar? Não sei bem o que vejo agora, nem o de antes que pensei ver, nem o de agora, pois não sei mais quem é este que se mostra. Então, eu fechava os meus olhos e preferia pensar que a loucura era uma espécie de perda total dos nossos exércitos interiores. E, por isso, nossa alma fica distante até mesmo de nós.<br /><br />Fragmento 95. Um labirinto tem vários caminhos, várias portas e uma só saída, todos sabemos disso. Mas encontrei um labirinto com um só caminho, porém com várias saídas. Só alguém que nos emociona e toca consegue abrir uma porta dentro do nosso ser impulsionada às vezes por coisas simples, muito simples, e aí posso novamente me sentir como a Alice no País das Maravilhas.<br /><br />Fragmento 96. Sinto que estou indo embora de mim mesma, embora eu ocupe o mesmo lugar, mesmo corpo, mesmos pensamentos. Estou indo embora, não sei para onde vai esta que eu julguei por tanto tempo ser a verdadeira. A Alice do País das Maravilhas deve partir. Mas esta outra que chega, tenho medo de quem possa ser.<br /><br />Fragmento 97. Na última vez em que estivemos juntos, recitei um antigo ditado indiano, que diz: depois de se subir no tigre, não se pode saltar. Se se quiser enxergar mais alto e mais longe, ver o que há por trás de tudo que existe, pois a vida não pode ser só isso, só o que vemos, não se pode saltar do tigre, seja ele o que for. Foi a minha última frase e foi neste instante, neste recitar bobo e sem sentido que algo se perdeu dentro de mim. Como alguém, somente com palavras, pode exercer tamanha força em tudo o que somos? Tempo de frases fortes, senti a terrível certeza de que eu já não era mais a Alice. Não eram nada aquelas páginas idiotas, pois que eram lirismo e romantismo puro, que hoje nada são.<br /><br />Fragmento 98. Percebi que o que fizera até então, não representava nada, nem ao menos para mim. Tempo desperdiçado. Fugi de mim mesma. Como sentir algo que nunca esteve dentro de nós? Sou escrava de meus pensamentos e outras coisas que eu não sei que habitam em mim. Limites. Forças ocultas. Bastidores. Metafísica.<br /> <br />Fragmento 99. Prometeu que viria conversar em sonhos, mas tem aparecido muito pouco. Algumas poucas frases e se vai. O que eu senti o tempo todo em que estivemos juntos? Eu não sei, não tem importância, não preciso definir. Um tremor de mãos, um pouco de suor, um rei de espadas que para muitos não faz sentido, o ermitão. Olhar nos olhos sedutores e não ver senão o escuro?<br /> <br />Fragmento 100. Depois que você saiu eu quis sair de mim mesma, eu estava completamente adormecida, embora embriagada. Precisava convencer-me de que tudo era brincadeira. Por que a alma perde a sua consciência pessoal? Por que é sempre uma outra pessoa que nos leva a perdê-la? Por que nos perdemos quando o coração bate? E por que o coração não pulsa pelas pessoas certas? De que adianta momentos de alegria quando atiramos para o alto o que temos de mais sagrado? Só por pensarmos que alguns momentos de alegria podem nos deixar uma reserva de ‘vida’ por alguns dias a mais? Não deveríamos ser imunes às dores, após termos passado por elas?<br /><br />Fragmento 101. Ser único no mundo é um peso, é a condenação de Sísifo, só você para saber como sente, porque sente e de nada adiantam palavras se nunca, nunca, por mais belas palavras que possamos usar, ninguém jamais conseguirá ter uma idéia de como algo foi sentido. Por isso, não adianta procurar alguém que seja uma espécie de alma gêmea, nem assim. O universo brinca conosco. A normalidade não faz sentido, torna as pessoas cegas a verdades que não existem e que não fariam nenhuma diferença para o universo se não existissem, também um futuro que nunca terão. Se, pelo menos, a metade do mundo fosse de filósofos, o tempo demoraria mais a passar.<br /><br />Fragmento 102. Como se livrar da moira que habita nossa casa imaginária? Pensei que já tivesse vivido todas as dores. Sim, eu fiz questão de ir atrás e de viver o que existe no mundo. As moiras que não vivi na realidade, antecipei em meu imaginário com uma dimensão tão grande que, caso precisasse vivê-las, seriam menores, e a abertura que eu poderia dar a tudo isso nos meus pensamentos não haveria de provocar uma punhalada a mais em meu nobre e delicado coração.<br /><br />Fragmento 103. Confesso, nunca sonhei com coisas que pertencessem à realidade. Eu sempre soube, meus sonhos só caberiam dentro de mim mesma. Agora, tornei-me um pouco mais distante. Mais alguns invernos e terei completado quase todo o caminho de uma distância que não quis percorrer. O eterno retorno que não escolhi.<br /><br />Fragmento 104.Não importa que o coração dele venha a secar como uma árvore de outono, pois quem está preocupada com isto sou eu, não ele. Como saber se um beijo é de despedida ou de ‘em breve nos veremos’? Volto para meu porto seguro, todos temos um em segredo. É possivel salvar algum momento? Quem sabe no futuro alguém precise voltar seus olhos para este momento. Sim, melhor salvá-lo. Existe uma primeira vez, uma segunda e uma terceira, então, dizem, transforma-se em amor. Se assim fosse, eu teria amado? Talvez eu esteja virando uma traficante de minhas próprias idéias. Não sei.<br /><br />Fragmento 105. O que realmente amo nas pessoas são as idéias que têm ou que possam vir a ter. Tem certas coisas na vida que são quase impossíveis de serem mudadas, sabemos disso. Então é um consolo pensar que algumas pessoas passam pela nossa vida para que nos mostrem um algo a mais que antes não havíamos percebido, as pessoas não surgem sem uma razão que nunca compreendemos qual é, mas vão embora com razões inúmeras e sempre, sempre, sabemos porque nada fizemos para impedi-las de ir. Sim, agora já posso afirmar: ‘é preciso ter um caos dentro de si para dar luz a uma estrela cintilante.’<br /><br />Fragmento 106. Então quando acaba o amor? Quando eros deixa de habitar o que chamamos de nossos sentimentos? O que fica no lugar? Permanece o eros que se contrapõe a tanatos e vai embora aquele que é uma espécie de eros-transitório, eros-andarilho, eros-ficção, eros-efêmera-invenção, para que o verdadeiro eros não sucumba a tanatos. O feitiço contra o feiticeiro, o amor acaba pelo instinto dele próprio, eros nos dá e nos tira o amor, do contrário tanatos nos destruiria. Nos dá o caos e a estrela cintilante, mais tarde, transbordante, nos joga de volta para a realidade tediosa de sentimentos banais e previsíveis, com os quais podemos viver tranquilamente. Podemos então esquecer que amamos esta e aquela pessoa e darmos uma trégua à guerra dos dois exércitos: talvez atenas contra esparta.<br /> <br /><strong>Fragmento Final. É assim que o amor acaba. <br /> Eterno retorno sobre si mesmo.<br /> </strong></span></div><div align="justify"><span style="font-family:trebuchet ms;"><strong> Mas ainda insisto: sempre na madrugada.</strong></span></div><div align="justify"><strong><span style="font-family:Trebuchet MS;"></span></strong> </div><div align="justify"><strong><span style="font-family:Trebuchet MS;">Anna K. & Antigos Escritos de 1997</span></strong></div>sandra adria_na fasolohttp://www.blogger.com/profile/10290250930694294016noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-16588935.post-1130252744265059312005-10-25T12:56:00.000-02:002005-10-25T13:10:27.686-02:00sonho soneto-em-prosa<div align="justify"><span style="font-family:trebuchet ms;color:#66ff99;">Como os sonhos se movimentam de uma forma distante das regras e da lógica com que vivemos despertados. Sonhei, nesta madrugada, com um poeta que conheci recentemente_ ele estendia para mim uma página e pedia que eu lesse o soneto que escrevera. Só que o soneto estava escrito em prosa poética, mas era um soneto. Lembro de ter lido o título e as duas primeiras frases, no sonho me encantei com o título porque enquanto eu lia com os olhos "o poeta" explicava o quê o levara a escrever o "soneto". Título: <em>A Uma Mulher Pedinte.</em> As outras duas frases sei que as li no sonho, mas não consigo lembrar. Sei que havia nelas muita beleza pois diziam algo inesperadamente belo. Como gostaria de poder recordar o que li durante este sonho. O poeta? Sabia que seus "versos" eram bons. Havia vida em sua poesia. Ele vivia só para isso. Será que existe algum poema com este título?<br /><br />Anna K. & O soneto-em-prosa</span></div>sandra adria_na fasolohttp://www.blogger.com/profile/10290250930694294016noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-16588935.post-1127807651033825152005-10-13T04:42:00.000-03:002006-02-23T23:31:58.580-03:00De face para a Literatura_ seguindo pegadas invisíveis<a href="http://photos1.blogger.com/blogger/7188/1578/1600/sandy.jpg"><img style="FLOAT: left; MARGIN: 0px 10px 10px 0px; CURSOR: hand" alt="" src="http://photos1.blogger.com/blogger/7188/1578/320/sandy.jpg" border="0" /></a>sandra adria_na fasolohttp://www.blogger.com/profile/10290250930694294016noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-16588935.post-1127797510273178652005-10-12T02:00:00.000-03:002005-11-02T02:57:08.213-02:00De meia-face para a Literatura<a href="http://photos1.blogger.com/blogger/7188/1578/1600/plat-sandraP&B.jpg.gif"><img style="DISPLAY: block; MARGIN: 0px auto 10px; CURSOR: hand; TEXT-ALIGN: center" alt="" src="http://photos1.blogger.com/blogger/7188/1578/320/plat-sandraP%26B.jpg.gif" border="0" /></a>sandra adria_na fasolohttp://www.blogger.com/profile/10290250930694294016noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-16588935.post-1127070230135379602005-10-08T15:44:00.000-03:002005-09-18T16:03:50.140-03:00Último manuscrito<div align="center"><span style="font-family:verdana;color:#99ffff;">Se apela para coisas que nem imaginamos para acalmar as emoções</span></div><div align="center"><span style="font-family:verdana;color:#99ffff;">Algo precisa ser diluído?</span></div><div align="center"><span style="font-family:verdana;color:#99ffff;">O triste pode ser belo? Sim, na 'eternidade' só poderá haver</span></div><div align="center"><span style="font-family:verdana;color:#99ffff;">algo que nos acompanhe para sempre, como o belo das coisas tristes.</span></div><div align="center"><span style="font-family:verdana;color:#99ffff;"></span> </div><div align="center"><span style="font-family:verdana;color:#99ffff;">Ressoam as palavras, ressoam outras coisas, é tudo novo e ao mesmo tempo, não.</span></div><div align="center"><span style="font-family:verdana;color:#99ffff;">É isto então, até.</span></div><div align="center"><span style="font-family:verdana;color:#99ffff;"></span> </div><div align="center"><span style="font-family:verdana;color:#99ffff;">karenina & sensações distantes de uma época tão longínqua quanto</span></div>sandra adria_na fasolohttp://www.blogger.com/profile/10290250930694294016noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-16588935.post-1126397018391457082005-10-07T06:59:00.000-03:002005-09-12T01:47:33.236-03:00O champanhe rosa no gelo<div align="justify"><span style="font-family:trebuchet ms;color:#ff99ff;"><strong>Adoro hotéis, também por comodidade. Amo a música <em>Hotel Califórnia</em>. Talvez a desejasse antes mesmo de conhecê-la. Quem poderá saber se não amamos aquilo que vem ao encontro de nossos desejos já tão antigos? Quem poderá saber se não amamos aquelas coisas já esperadas? Quem sabe, há quanto tempo? Se determinado encontro ocorresse, por exemplo, há dez anos atrás eu teria tido momentos de verdadeira felicidade, mas hoje talvez não passasse de um pensamento rápido: o acaso traz consigo a vaidade. Acabei por divagar, toda a nossa vida é cercada por coisas e pessoas desejadas, elas passam, as vemos uma única vez_ de um jeito intenso ou desinteressado_ ou encontramos com elas várias vezes, também de forma indiferente ou intensamente. Tudo isso tem a ver com o tempo em que nossas vontades chegam ou quando começam a existir ou ainda quando existem e percebemos sua presença como se fosse algo exterior a nós mesmos. </strong></span></div><span style="color:#ff99ff;"><div align="justify"><br /><span style="font-family:trebuchet ms;"><strong>Quando surge em sensações estavam lá em nossos pensamentos?<br />Quando se cumprem, tão mais tarde, eram ainda aquelas vontades iniciais? </strong></span></div><div align="justify"><br /><span style="font-family:trebuchet ms;"><strong>As coisas parecem sempre chegar tarde, como se não tivéssemos mais nada a dizer, elas vêm com uma camada de normalidade tornando o desejado algo vão, inútil, quase um sarcasmo do tempo para com as nossas esperanças. A esperança é a prova da existência do desejar. Mas pode ter o significado de armadilha e, assim, forma-se um círculo: desejos, esperas e ciladas tornando o mundo outro que não o mesmo. Substituímos, trocamos, esquecemos, lembramos ‘desejos’ o tempo todo, eles vêm invertidamente; eles, quando vêm, já não são o sonhado. Perderam-se? Ou fomos nós que ao temer as brincadeiras da vida acabamos dando um jeito de torná-los menores porque se nada vier, a espera não terá consumido tanto do que somos. Terá sido apenas a espera usada para povoar a existência e fazer de conta que "algo vivido" foi realmente importante, embora sequer possa ter acontecido. Da mesma forma, como o tempo não serve para justificar a continuidade de um querer que nunca é somente um, mas vários, falar sobre aquilo que sempre nos acompanha serve para se pensar em Destino. Desejar desculpas é um desejo. Tudo o é ou pode ser. Tudo se torna uma espera. Mesmo quando possuir o significado de armadilha, coisa não-desejada, eis então o sentido invertido. Uma vez um homem disse “é preciso amar o destino que se possui. Amar aquelas coisas onde colocamos um valor só nosso_ onde colocamos o nosso amor diante da vida.” Amar o próprio destino e aceitá-lo, pois há nele muito mais razões para se viver que aquelas imaginadas e, por vezes, tudo aquilo pelo qual viveríamos e também pelo qual desprezaríamos o mundo inteiro. E quando vem a culpa por tal desprezo, em silêncio podemos pedir perdão sem sabermos a quem ou porquê, pois também aí há amor. Insano. Concessão irracional disfarçada de compaixão para consigo próprio. Como naqueles dias em que uma palavra, só uma, faz valer tudo pelo qual se viveu até então. Ou naqueles dias em que nenhuma palavra teria o poder de dar sentido a qualquer coisa vivida, porque como nós, somos nós, ainda que numa palavra_ em todas ou nenhuma. Descer a avenida num dia de chuva após se ter saído do cinema e se permitir gritar alto, todos os dias são dias de descidas em algum lugar e para alguém com o lamento do desconforto a nos jogar na lucidez: todos os dias são instantes nos quais algo é desejado ou esquecido. Esperamos com os olhos voltados para um determinado momento onde pretensamente julgamos que nos pertence. Tal momento deveria ter sido vivido no tempo em que se deu e em nenhum outro. Não poderíamos jamais estar em outro lugar, pois, do contrário, o instante teria sido outro. No entanto, nunca pensamos se há uma data para que se cumpra até o final ou se o momento em que deveria se cumprir em definitivo deveria nos pertencer tanto quanto aquele de seu surgimento. Isto torna a vida menos jogada? Não, no fim tudo se torna como se fosse o último destino do mundo a tocar um estridente alarme para todos que se pensam sem destinos, sem defesas, quando nada se espera não há o risco do sentido ser lançado em outra direção e vir a ser uma cilada. E quem poderá saber? Se do destino ou do instante? </strong></span></div><div align="justify"><span style="font-family:trebuchet ms;"><strong></strong></span></div><div align="justify"><span style="font-family:trebuchet ms;"><strong>A vida soará continuamente como se fosse Hotel Califórnia em noites chuvosas onde o silêncio espera mais que um grito e nos mostra que o banal é tão o mesmo quanto qualquer outra coisa inusitada onde quem cala tem em si o desejo mais forte. Vamos então vivendo, com desejos substituídos, a sensatez nos obriga a isso, com desejos esquecidos, alguns foram tidos equivocadamente como tais, com desejos-inventados, não eram quase nada, apenas a desculpa de muitos para passar pela sua própria vida com o alívio de um pensamento que se diz: eu sempre quero algo, sempre, eu sou puramente um ser de vontade porque ainda existo, então, porque sou, quero, olho, sinto, nem sei bem o quê, mas isto não importa, apenas importa saber, o tempo em que algo chega já não mais me concede reconhecê-lo e, por isso, posso silenciar em mim mesmo: nada sei do que veio e do que partiu, nem daquilo que já não sou, só sei do que me move (in) sensatamente, espero do silêncio o seu desejo mais frágil para tornar a existência mais Hotel Califórnia: </strong></span></div><div align="justify"><br /><span style="font-family:trebuchet ms;"><strong>‘uma dança para lembrar, uma dança para esquecer. E quando as vozes chamarem ao longe desejarei álibis, espelhos no teto e champanhe rosa no gelo.’ E ouvirei: </strong></span></div><div align="justify"><span style="font-family:trebuchet ms;"><strong></strong></span></div><div align="justify"><span style="font-family:trebuchet ms;"><strong>‘nós somos todos prisioneiros aqui, por nossa conta’ e se eu correr para a porta para encontrar a passagem de volta, para o lugar em que eu estava antes, o homem da noite pronunciará: você pode registrar a saída quando quiser, mas nunca mais poderá ir embora.’</strong></span></span><a title="" style="mso-footnote-id: ftn1" href="http://www.blogger.com/app/post.pyra?blogID=6466408#_ftn1" name="_ftnref1"><span style="font-family:trebuchet ms;color:#ff99ff;"><strong>[1]</strong></span></a><span style="font-family:trebuchet ms;color:#ff99ff;"><strong> </strong></span></div><div align="justify"><span style="font-family:trebuchet ms;color:#ff99ff;"><strong></strong></span></div><div align="justify"><span style="font-family:trebuchet ms;color:#ff99ff;"><strong>Eis que estou, em definitivo, aprisionada em desejos.<br /><br />Anna Karenina & o Champanhe rosa no gelo </strong></span></div><div align="justify"><span style="font-family:trebuchet ms;color:#ff99ff;"><strong></strong></span></div><div align="justify"><a title="" style="mso-footnote-id: ftn1" href="http://www.blogger.com/app/post.pyra?blogID=6466408#_ftnref1" name="_ftn1"><span style="font-family:verdana;font-size:78%;color:#ff99ff;">[1]</span></a><span style="font-family:verdana;font-size:78%;color:#ff99ff;"> ‘Em uma estrada escura e deserta, vento frio no meu cabelo/...Ao longe vi uma luz trêmula/ Minha cabeça ficou pesada e minha vista ficou obscurecida/ Eu tive que parar para passar a noite/ Lá estava ela na entrada/ Eu escutei o sino da missão/ E eu estava pensando comigo mesmo/ Aquilo poderia ser o céu ou poderia ser o inferno’/Então ela acendeu a vela e me mostrou o caminho/ Havia vozes debaixo do corredor/ Eu pensei ter ouvido elas/ dizerem/ Bem vindos ao Hotel Califórnia/ Que lindo lugar/ Que lindo rosto/ Vários quartos no Hotel Califórnia/ Em qualquer época do ano, você pode encontrá-lo aqui/ Ela tinha muitos garotos bonitos que chamava de amigos/ Como eles dançavam no pátio, doce suor de verão/ Uma dança para lembrar, uma dança para esquecer/ Então eu chamei o capitão/‘Por favor traga meu vinho’/Ele disse ‘ Não temos tido dessa bebida aqui desde 1969’/E aquelas vozes ainda chamavam de bem longe/ Bem vindos ao Hotel Califórnia/ Que lindo lugar/ Que lindo rosto/ Eles estão vivendo no Hotel Califórnia/ Mas que boa surpresa, trouxeram seus álibis/ Espelhos no teto/ Champanhe rosa no gelo/ E ela disse ‘ Nós somos todos prisioneiros aqui, por nossa conta’/E na câmara do mestre/ Eles se juntaram para o Banquete/ Eles espetavam com suas facas de aço/ Mas não podiam matar a besta/ A última coisa que lembro, eu estava correndo para a porta/ Eu tinha que achar a passagem de volta/ Para o lugar que eu estava antes/‘Relaxe’, disse o homem da noite/ Nós somos programados para receber/ Você pode registrar a saída quando quiser/ Mas você nunca mais pode ir embora.’ Eagles. </span></div>sandra adria_na fasolohttp://www.blogger.com/profile/10290250930694294016noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-16588935.post-1126395048128189702005-10-06T07:29:00.000-03:002005-09-13T01:33:11.596-03:00O "mais" longo verão fitzgeraldiano<div align="justify"><br /><span style="font-family:trebuchet ms;color:#999999;">Vejo algumas pessoas andando e outras sentadas na praça em frente ao prédio onde moro, permanecem por algum tempo e depois se vão. Vejo alguns bêbados na esquina, conversam sobre assuntos diversos em voz alta e descontrolada. Vejo um rapaz vestido esquisitamente-<em>trash</em>, ele caminha em direção a um dos bancos da praça e se senta enquanto outro vem até ele e o cumprimenta, de forma rápida um envelope é repassado, os dois se afastam em seguida pelo mesmo caminho feito até ali. Vejo uma mendiga com roupas de inverno numa noite ainda de verão, ela circula pelos dois lados da avenida e pela praça como se o mundo contivesse somente este limite, como se ela não tivesse mais noção de espacialidade ou ainda como se não fizesse diferença ir para esquerda, para a direita ou dar voltas no mesmo lugar, como se fosse realmente o único que restara no mundo. Wittgenstein, disse, de forma brilhante, "os limites do nosso mundo são os limites de nossa linguagem", lembrei disso quando vi a cena da mendiga tentando defender um pacote, encontrado no lixo, de outro habitante de rua, o resultado foi que o habitante de rua irou-se com ela e com um movimento violento arremessou o embrulho fazendo o conteúdo espalhar-se pelo chão, ele vai, então, embora, enquanto a mendiga fica olhando para o que sobrou do pacote como se não acreditasse que fora roubado de suas mãos e agora estava ali, inutilizado. De repente, sentindo-se observada, olha para cima e vê que eu a observo, permanece olhando fixamente para mim. Sua atenção se desvia para um senhor, talvez também tivesse presenciado o ato de crueldade e caminhara em sua direção, pára e dá a ela algumas moedas. Ela as pega. Ele se vira e continua a andar. Ela olha para as moedas, torna a olhar para mim, coloca-as no bolso, torna a olhar para o chão e ergue novamente os olhos para a sacada onde estou. Então, eu entro e fecho a porta. Sempre que vejo uma cena dessas fico com vontade de ir até onde a pessoa está para conversar e saber como a sua vida chegou ao que é, pensei em descer para conversar. Mas não o fiz. Apenas entrei e fechei a porta. Será que é a loucura que faz algumas pessoas adquirirem um tipo de vida sem rumo? Ou será que é a própria miséria que após não apontar outro caminho, acaba tirando a lucidez? Em qualquer um dos casos a dor não está ausente. Isso é suportável para um ser humano? Do meu ponto de vista, daqui, de onde observo, não considero de forma alguma suportável. Outras pessoas circulam. Pego novamente <em>O grande Gatsby</em> de F. Scott Fitzgerald, lembro de Zelda, sua esposa, lembro do jovem rapaz de rosto quadrado que numa noite de autógrafos ficou um longo tempo parado em pé com um livro entre as mãos e olhando para mim de longe com um meio sorriso entre os lábios. Lembro dele nessa noite, <em>fitzgeraldiana</em> em vários sentidos, de ter se aproximado e estendido o livro de Fitzgerald, <em>Suave é a Noite</em>, para que eu escrevesse algo ali, pois além dele não ter outro livro em mãos eu lembrara a ele, Zelda, fora a explicação que eu ouvira naquela noite, hoje, sei que Zelda inspira uma lembrança de certa falta de lucidez. O jovem adorador de Fitzgerald era suave, seu livro trazia no título a suavidade e a noite. Lembro de haver falado inicialmente de Wittgenstein e da mendiga, pois os movimentos andarilhos dela em um espaço tão pequeno fizeram com que eu pensasse sobre os limites de um mundo apenas em relação ao espaço_aparentemente físico_ escolhido por ela para andarilhar à noite. A sua linguagem não-falada determinara o limite deste mundo?, seria preciso perguntar a ela. Como faria isso? Resolvo descer. Desço com <em>O grande Gatsby</em> entre as mãos. Sento-me ao seu lado, saudei-a com uma “boa madrugada” e abri o livro, imediatamente li a passagem de uma das descrições mais belas sobre um sorriso já dado:<br />“Sorriu compreensivamente_ muito mais do que compreensivamente. Era um desses sorrisos raros que têm em si algo de segurança eterna, um desses sorrisos com que a gente talvez se depare quatro ou cinco vezes na vida. Um sorriso que, por um momento, encarava_ ou parecia encarar_ todo o mundo eterno, e que depois se concentrava na gente com irresistível expressão de parcialidade a nosso favor. Um sorriso que compreendia a gente até o ponto em que a gente queria ser compreendido, que acreditava na gente como gostaríamos de acreditar, assegurando-nos que tinha da gente exatamente a impressão que a gente, na melhor das hipóteses, esperava causar.” </span></div><div align="justify"><span style="font-family:trebuchet ms;color:#999999;"><br />A senhora de idade avançada, magra e triste, não sorriu quando acabei de ler a passagem, olhou para o céu, murmurou algo incompreensível, permaneceu olhando para cima. Não quis contar sua história para uma mulher estranha que aparecera do nada, isso me fez refletir que uma parte dos seres humanos, onde quer que possam estar e em que circunstâncias estejam vivendo, possuem uma espécie de comoção para com seu próprio passado, para com a história de sua vida e, mesmo que fosse uma habitante de rua, ela não me contaria sua vida sem que antes eu lhe mostrasse que poderia confiar em mim. Então, eu me levantei, dei a ela uma caixa de bombons e estendi junto o <em>O grande Gatsby</em>_ ainda que não o tivesse terminado de ler. Talvez ela soubesse ler, talvez tivesse esquecido disso, talvez outra pessoa pudesse ler outra passagem em uma noite que se seguiria semelhante àquela. Dei alguns passos, virei-me para trás movida pelo impulso em saber o que ela faria com Gatsby, e percebi o movimento de suas mãos levando o livro junto ao coração, segurando-o firmemente olhou-me um pouco de lado 'sorrindo' de um jeito meio incerto. Fora um desses raros sorrisos fitzgeraldianos,</span></div><div align="justify"><span style="font-family:trebuchet ms;color:#999999;"> </span></div><div align="justify"><span style="font-family:trebuchet ms;color:#999999;"></span></div><div align="justify"><span style="font-family:trebuchet ms;color:#999999;"> "com que a gente talvez se depare quatro ou cinco vezes na vida."</span></div><span style="font-family:trebuchet ms;font-size:85%;"><div align="justify"><br /><span style="font-family:trebuchet ms;font-size:100%;color:#999999;">Preciso comprar outro exemplar de <em>O grande Gatsby</em>. Desejo lê-lo antes que o verão mais longo termine.</span></div><div align="justify"><span style="font-family:trebuchet ms;font-size:100%;color:#999999;"><br />Anna K. & <em>Suave é a Noite</em> 3 de abril_2005<br /></span>Excluir </span><a href="/posts.g?blogID=6466408"><span style="font-family:trebuchet ms;font-size:85%;">Cancelar</span></a><span style="font-family:trebuchet ms;font-size:85%;"> Cancelar</span></div>sandra adria_na fasolohttp://www.blogger.com/profile/10290250930694294016noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-16588935.post-1126395867099476392005-10-04T05:40:00.000-03:002005-09-15T00:50:47.780-03:00Dados de várias faces<div align="justify"><span style="font-family:verdana;font-size:85%;color:#ffff66;">Dados de várias faces [...] uma certa tortura mental, sádica, transformada em sobrevivência: eis o homem, eis o imaginário a nos conduzir com suas máscaras apegadas à face sem poder, contudo, removê-las. Há tempo para tudo. Igualmente para retirar a máscara, uma vez tendo ultrapassado a área-limítrofe torna-se atemporal e irremovível, assim vemos muitos morrendo: sufocados em seus disfarces tão bem elaborados quando eles trazem a morte de uma vida inexistente. Emboscadas em todos os tempos nas coisas paradoxais, eis o disfarce, somos nossas próprias armadilhas, somos os homens em meio a atalhos com seus jogos de dados de várias faces.<br /><br />O que ele e Marília fariam não era a decadência da paixão, não era isso a movê-los ao que estava para ser feito. Maldito mundo repleto de ilusões e histórias distorcidas. Tristes ilusões simuladas em outras tantas e fartas de um universo invertido em conceitos banalizados e conformistas, a levar os homens a se encobrirem com palavras, com a única intenção provável: distraí-los de sua existência. Impossível o voltar-se sobre si mesmos, não sabem de onde vêm ou para onde vão, quanto tempo têm. Não tinham direito ao princípio de tudo? Pois o resto seria deles. Estava se cansando de pensar em possibilidades passadas, de nada serviam além de desviá-lo de si próprio, não iria cair na armadilha onde todos sucumbem e continuar andando para lugar nenhum. Caminhariam, ele e Marília, sem disfarces, com certeza isso seria levado pelos outros a um grau insano. Não se importava, há muito não se importava com julgamentos, sua forma de pensar chegara à indiferença. O que era a decadência de um ser humano? ‘Viver a vida’, diziam, sim, era preciso ter coragem para viver além desse pisar cego acompanhado de atalhos sedutores, falsos, muitos se vangloriavam de já o ter encontrado quando era só olhar para o brilho ausente e ver homens tentando colocar, a cada nova manhã, uma máscara de felicidade que nunca existiu, como poderia? Talvez fosse melhor dizer: morrer a vida e permitir à morte se transformar em algo além da vida humana. </span></div><span style="font-size:85%;"><div align="justify"><br /><span style="font-family:verdana;color:#ffff66;">O perfume de Marília a espalhar-se pelo quarto me desperta de tais divagações, daqui a pouco vamos compartilhar da Nona Sinfonia de Beethoven, soube morrer a vida, talvez. O cheiro de violetas e notas de cravo enchem o ar de um aroma doce e forte, um perfume estranhamente familiar e como se fosse outro. Marília lembra que eu não esqueça de prender no pulôver o lindo peixe trabalhado com filetes azuis. O exótico peixe, que ficará cravado no meu peito por cima da lã, tornara-se uma crença falsa, uma constante fantasia a representar o ‘real’. Em frente ao espelho começo a colocá-lo e vejo pela imagem invertida do reflexo espelhado, no extremo do quarto, a pintura, não menos íntima, representando Werther a tocar com um gesto suave a mão de Carlota, este toque, quase como se os dedos de Werther estivessem a abandonar a pele de sua amada num movimento de ação contrária, sempre instigara em minhas sensações a imagem de uma angústia e um medo não revelados, por que insistira em manter tal quadro em nosso quarto? Tentativa de racionalizar. Um toque perdido no amor que Werther pensara existir fora o que o levara ao suicídio? Refletir se o desespero da perda de um contato acabara por roubá-lo de si mesmo justificaria a demora em enfrentar o destino escolhido? Por certo que fora isto, não Werther? Ah, os idealistas românticos e seu mundo a não ser nada mais do que aquilo que pensam sobre ele, do que se pode ver através do olhar ou no roçar roubado sobre a pele, somente isto. Vejo também a angústia e um atalho final por sombras de um passado de possibilidades, como se isso alterasse algum momento. Passado de possibilidades desdobra-se em diversos finais diferentes, todos verdadeiros em nosso imaginário tão vulnerável, enquanto possíveis, se o atalho tomado fosse outro que não o real, tornando tudo que deixamos para trás abstratamente inútil e fictício. Por que alguém revira suas memórias? Por que um velho se mata? Por que espera toda uma existência para cometer tal ato se não irá muito mais longe? Zaratustra jogava dados e brincava com o determinismo de um ‘deus’ que primeiro negou, depois matou. Como alguém mata o inexistente? De que adianta, os dados nada podem contra a morte, única certeza. Não há essa face nos dados, nada prometem. Hermann, escuta Marília chamá-lo, estou pronta, diz ela. O ritual termina, estão prontos para irem ao teatro encontrarem Beethoven e a Ode musicada de Schiller. Marília pega os cálices de licor e estende um para mim, ainda Werther perturba meus pensamentos e ecoa pelo quarto, ‘qual é o destino do homem senão suportar a parte de sofrimento que lhe toca, tragar seu fel até a última gota? E, se o cálice pareceu demasiadamente amargo aos lábios humanos do deus celestial, por que me farei eu mais forte do que na realidade sou, fingindo achá-lo doce?’ Sinto o líquido amargo escorrer pela garganta. Marília bebe em silêncio. Noto seus olhos aquosos sem expressão de choro, serena e com o olhar úmido termina o licor. Faço o mesmo. Ela pede então que eu leia o texto escrito quando nos conhecemos, sobre Zara e os Dados, quando brincávamos com toda essa história de determinismo e coisas não–escritas sobre o nosso destino. O texto sempre esteve entre nós, o não-escrito também. Leio para ela: </span></div><div align="justify"><span style="font-family:verdana;color:#ffff66;"></span></div><div align="justify"><span style="font-family:verdana;color:#ffff66;">— Zaratustra se fosse jogar algo jogaria dados e não xadrez: os dados são o destino, a probabilidade finita convertida em infinita através do acaso, de um destino não-escrito, lances sem qualquer regra ou estratégia como no xadrez, sim, ele seria um jogador de dados. Os dados não estão escritos para caírem nessa ou naquela combinação, eles são simplesmente lançados como a probabilidade de você ir até o cinema hoje ou não e isso mudar todo o curso de sua existência. O lance é o maior destino, embora alguns desprezem por pensarem somente em suas combinações finitas e possíveis. Sinto-me leve e sem destino, sinto-me pesado e com um atalho a minha frente. Sinto meus pensamentos e os volto para quem não procurou dados perdidos entre as nuvens. Alguém os procurara por lá ? Estou e não estou aqui. Jogo e não jogo dados. Por que jogaria? Para cima voltarei o meu olhar. Continuo o caminho de Zaratustra. Eis que o continuo. Ele carregava dados em seu bolso, quando subiu à montanha e lá ficou por trinta anos. Soube do mar, que transporta, onde foram atirados por cima desse mesmo mar. Soube das águas, que vão além desse mesmo mar, que lá nunca ficariam imóveis. Reconheces e bebes da água que a nenhum lugar pertence. Alguém ainda chora o repouso do nada. Eis que nada importa, não saberão se a chuva não cabe em seus sonhos, tudo se perde apenas em correntezas de sonhos. Sucumbem e se elevam mais tarde em sonhos de versos em mar. Eis que não saberemos jamais quais são as faces de nossos lances, quais são os lances que nos voltam suas faces, quais as faces do destino não escrito, ora sucumbe em turbulências, ora no abismo das águas. Sou apenas mais um dado a ser jogado pelo eterno retorno. Eu não sou um dado nas mãos de deus, faço do mundo um lance de dados. Eu quero ser um dado no fundo do mar a se agitar de forma incontida, a se curvar diante das várias faces de um destino não escrito, além de um passo possível, a cair em abismos cada vez mais profundos para depois da travessia passar por baixo das nuvens, com passos lentos e firmes e ainda que chova e eu precise caminhar sob esses pingos de chuva, eu vou murmurar para mim mesmo: sou um dado em minha própria mão e nada mais.</span></div><div align="justify"><br /><span style="font-family:verdana;color:#ffff66;">— Vamos? — diz ela, quando termino de ler, a mão de Marília estendida em minha direção faz meu olhar retornar de novo para o quadro. </span></div><div align="justify"><span style="font-family:verdana;color:#ffff66;">— Sim, vamos — respondo — olhando pela última vez o gesto da mão de Werther em direção à Carlota e não consigo evitar um estremecimento letárgico, eu e Marília possuíramos uma química bem mais verdadeira e sem ações repulsivas ou contrárias que o jovem suicida de Goethe.</span></div><div align="justify"><br /><span style="font-family:verdana;color:#ffff66;">Entramos no teatro e no silêncio esperado. Em breve a música tomará conta de todos. Se o brilhante músico pudesse ler o comentário de Schopenhauer sobre o fato de falar sobre sua filosofia para uma platéia de surdos, teria composto até a quinta sinfonia, chegou até a nona. O que ele teria de especial para acreditar que os outros iriam ouvi-lo, embora ele não o pudesse mais? Isso era para poucos. Beethoven fora assim. Há um efeito rebote da Nona Sinfonia, passa-se primeiro pelo paraíso enquanto ela soa para nós, depois de acabado o transe todos voltam para si como pedaços humanos e o fim, com a última nota, tem efeito triunfal e depressor, talvez de possibilidades passadas, inexplicáveis, somente a ser aplacada pela repetição da ‘Ode à Alegria’. Um perpetuar de sensações num círculo vicioso de uma salvação que não nos pertence agindo em uma circularidade tentadora e não menos perigosa e fascinante.</span></span></div><span style="font-family:trebuchet ms;font-size:85%;"><div align="justify"><br /><span style="font-family:verdana;color:#ffff66;">Cerro os olhos e percebo a se expandir com a respiração um estado anestesiante, consigo ainda tocar na face de Marília, ela está perdendo o calor, o frio ressurge em mim junto com o entorpecer do líquido do cálice de Goethe, semelhante ao absinto. Sinto muito frio. Venta lá fora? Está chovendo? Alguém ainda está em guerra? Os astros se movem no infinito? À noite, ainda insisto no meu desejo em voltar para a falsa transparência da água? Minhas pálpebras já não se movem, a música soa distante, muito longe, parece Carmina Burana, uma flauta soa perto de minha cabeça, uma flauta com sons azuis, sinto o peixe se agitar por cima do pulôver sobre meu peito, o cheiro de violetas misturado com a escuridão e o silêncio diante de um abstração a envolver a todos como numa panacéia. Tento tocar mais uma vez em Marília, já não posso. Ainda ouço murmúrios, ‘o que o mundo separou ... sim, quem ainda uma só alma pôde no mundo sua chamar! Quem não pode conduza em pranto, para longe daqui seu triste caminhar, eu vos abraço, esse beijo envio ao mundo inteiro, buscai-o então acima dos astros, além das estrelas está sua morada.’ Ainda ouço. </span></div><div align="justify"><br /><span style="font-family:verdana;color:#ffff66;">O guarda apaga as luzes e fecha as portas do teatro enquanto todos saem do concerto para o efeito rebote que os aguarda pelo percurso a ser feito até em casa. Lá fora chove sim, também venta e muitos estão em guerra, todos contra todos e contra si mesmos. Os astros talvez se movam para algum lugar. Hermann também tinha razão, a atração pelo metafísico é como o líquido que abraça o peixe em sua redoma de vidro e acaba por afogá-lo. Talvez o som da flauta ainda soe, talvez consiga ainda murmurar: não sou um dado nas mãos de deus, eu faço meu próprio destino e decido a hora em que verifico quantas faces possuem os novos dados. Sou meu senhor e o senhor de Marília e nada nos faltará. </span></div><div align="justify"><span style="font-family:verdana;color:#ffff66;"></span></div><div align="justify"><span style="color:#ffff66;"><span style="font-family:verdana;"><strong>Anna & os Dados de Várias Faces Versus Salmo 132</strong> </span></span></div><div align="justify"><span style="color:#ffff99;">1999</span></span></div>sandra adria_na fasolohttp://www.blogger.com/profile/10290250930694294016noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-16588935.post-1126414406306272262005-10-02T01:43:00.000-03:002005-09-15T01:19:41.846-03:00Uma Estadia com Nietzsche & Dante<div align="justify"><br /><span style="color:#ffff66;"><span style="font-family:trebuchet ms;font-size:85%;">‘Ah, há gelo em volta de mim; queima-se minha mão tocando em gelo! Há uma sede, em mim, que almeja pela vossa sede (...) É noite: somente agora despertam todos os cantos dos que amam. E também a minha alma é o canto de alguém que ama.’ Nietzsche</span><br /><br /><span style="font-family:trebuchet ms;font-size:85%;">A inscrição suspensa no alto da porta conduzia ao vestíbulo do reino das trevas, ‘deixai, ó vós, que entrais aqui, toda esperança’, indiferentes ao bem e ao mal, excluídos do Céu e repelidos pelo Inferno. ‘Não seria isto, então, uma salvação?’, pergunta Dante a Nietzsche enquanto finaliza a história e termina seu café. Do outro lado da mesa Nietzsche permanece pensativo, ele sabe, irá se debater com seus escritos. Começa a pensar no caminho que leva ao alto da montanha de Zaratustra. Sim, aí também há uma inscrição e um portal. Já no quarto perturbando-se ainda mais com tal relação acaba por transportá-la a um semelhante significado: um certo prenúncio de se deixar para trás tudo aquilo pelo qual se viveu e se acreditou até então. Quantos são capazes disso sem chorar pelos dias que já não podem retornar? Zaratustra subiu à montanha sozinho. Houvera Virgílio como guia para passear pelo Inferno. Mas não há guias para o alto da montanha e nem tampouco há companhia. O limbo dantesco, repleto de anjos neutros, não seria mais suportável do que se permitir o desejo de entrar em si mesmo?, sucumbir sem o anseio de fim, seguir em frente sempre mais e mais deixando sangrar a própria vida. Há frio no percurso, há gelo no alto das montanhas, o calor da luz na planície ficará na planície, necessária para o 'calor' contínuo. O frio, necessário à nova inscrição dos infinitos portais, poderá ser o de que ainda é cedo, muito cedo para se olhar para estrelas inexistentes, demasiado tarde, muito tarde para continuar a cegar o olhar com sóis que já provocaram o não-ver, o não-viver e sobretudo o não-sentir. Nada me impede de desejar: tenho a cada dia e a cada noite vontade de tudo que é noturno, sem que o seja falsamente noturno como a escuridão do sol a iluminar o outro lado do universo. Tenho sede do que é noturno e solidão. Há estrelas demais para quem caminha sozinho? Não há estrelas para aqueles que olham em demasia para o sol? Ilusão de luz a ser também ignorada e que sem falar em esperanças, sem pedir que as deixe ou as tenha, nada esperando, ilumina o alto daqueles que procuram a si mesmos. Tenho, assim, sede. Um novo vir-a-ser: de que é preciso ter atravessado a angústia e a dor quase física da finitude para tornar o canto de alguém que ama, um ressoar para tudo aquilo que cria e transforma, nega e sente, chora e toca com a voz sem nos fazer sentir alegria pela falta de nossas lágrimas, diluídas em meio a tempestade, tirando de nossa pele o frio e a doença do cansaço. Que eu jamais volte a perguntar ‘para onde foram as lágrimas dos meus olhos?’ Tenho sede de desespero e a minha sede é, ainda, uma vez mais, meu grito solitário em meio aos atalhos, é, ainda, uma vez mais uma água a correr e envolver a montanha e um sucumbir em limites em que os deuses odeiam serem vistos. Tenho sede de precipício, de mais de um ano completo em seu eterno retorno, tenho sede de ser eu mesmo minha própria canção de nuvens sombrias, sem calor e sem palavras. Eis, vejo um porto reluzente em torno de minha morada. Eis, sinto a inscrição de Dante como um aviso: devo deixar, quando entrar em minha morada, toda a esperança que ainda existir. Mas levo junto, para todos os vestíbulos com seus infinitos portais e inscrições, minha própria sede de tudo que é noturno.</span></span></div><div align="justify"><span style="font-family:trebuchet ms;font-size:85%;color:#ffff66;"></span></div><div align="justify"><span style="font-family:trebuchet ms;font-size:85%;color:#ffff66;">Quando Nietzsche termina de escrever mais uma noite chega ao fim e o sol surge em seu eterno retorno. Um novo canto soa e se espalha como a quintessência não-doadora de metafísica a substituir tais ‘esperanças’ pela sede de vida de tudo que é humano. Vira a escuridão se extinguir e dar lugar a um outro eterno retorno, não o compreendia — dos dias empurrados por palavras sem sentido. Ouve em meio a ruídos o torpor de pessoas abrindo portas de lojas, cafeterias e centenas de outras que movimentam este mundo de realidades de um jeito contrário às suas próprias emoções. Centenas destas portas se abrem para a continuidade de uma vida ao avesso enquanto ele fecha os olhos para um outro tipo de beleza. Ainda ouve Dante bater na sua porta e dar um bom dia dizendo "já não lembro do que falamos na tarde anterior, mas podemos nos encontrar para outro café, caso estejas bem disposto". Nietzsche murmura qualquer coisa "como ele pudera esquecer do que dissera? Daquilo que proporcionara a ele desespero e euforia?" Dante responde indiferente, "são só mais algumas palavras a rondarem o real e a realidade, eu próprio também sinto minha mão queimar quando toca em gelo."</span></div><div align="justify"><span style="font-family:trebuchet ms;font-size:85%;color:#ffff66;"></span></div><div align="justify"><span style="font-family:trebuchet ms;font-size:85%;color:#ffff66;"></span></div><div align="justify"><span style="font-family:trebuchet ms;font-size:85%;color:#ffff66;">Nietzsche finalmente adormece, até o próximo retorno da noite, quando finalmente despertará ‘todos os cantos dos que amam’, também seus lábios estarão sendo sentidos como lábios de gelo.</span></div><div align="justify"><span style="font-family:Trebuchet MS;font-size:85%;color:#ffff66;"></span></div><div align="justify"><span style="color:#ffff66;"></span></div><div align="justify"><span style="font-family:trebuchet ms;color:#ffff66;">Anna K. & Uma estadia com Nietzsche</span></div><div align="justify"><span style="font-family:trebuchet ms;color:#ffff66;">1999</span></div>sandra adria_na fasolohttp://www.blogger.com/profile/10290250930694294016noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-16588935.post-1126396368763388522005-10-01T06:44:00.000-03:002005-09-11T23:39:40.736-03:00Partituras<div align="justify"><span style="font-family:trebuchet ms;">Ele vive em completo isolamento num bairro da zona sul, diz Itsa com gestos apressados e nervosos. Deve ser uma pessoa fascinante, continua, empolgada com a idéia de visitar o escritor já esquecido. Sim, diz Sebastian, e a casa dele provavelmente é diferente de tudo que conhecemos, ironiza. Podemos ir, desde que tu não resolvas mudar para lá. Sei como tu és quando te empolgas, não tens limites. Os olhos de Itsa brilham. Por que tanto interesse em ir, pergunta Sebastian. Queres te tornar escritora? Não, ela não quer. Gostaria apenas de ver a expressão nos olhos do escritor a falar de auroras e do sol, da noite e das estrelas, das lágrimas e do amor. Talvez até ele se comovesse na presença de ambos e deixasse rolar uma lágrima emocionada pela face. Itsa, testemunha da criação. Da mesma forma como vira Sebastian transformar-se num rapaz alto, de rosto quadrado e maxilares salientes, de grandes olhos cinzentos. Um jeito despojado, vinte e um anos e dono de um bar noturno. Itsa estudava artes plásticas. Ruiva, com olhos amendoados, não era alta, apenas com uma magreza acentuada e uma mania estranha de estar sempre com um livro grudado junto à bolsa. Por vezes os livros, tão velhos, levavam Sebastian a ter a impressão de que os insetos microscópicos, alojados nas folhas, seriam acolhidos através da sua pele e da sua roupa tão limpa, elevando a repugnância. Folhas de papéis funcionavam para ele como agentes morbíficos e perigosos. É claro que nunca diria isto a Itsa. A magoaria demais. Estava sempre a fazer qualquer coisa por ela, mimava suas vontades excêntricas sem, é claro, sentir-se dentro de um mar tempestuoso que beija o universo com suas ondas, como ela dissera quando vira o mar pela primeira vez. Ou quando descobrira as obras de Aristóteles. Deus, tivera que ouvir por meses uma história de que as letras e os sons — afeições da alma e das coisas — são iguais para todos no mundo. E só para vê-la feliz passara por momentos de desespero.</span></div><div align="justify"><span style="font-family:trebuchet ms;"></span></div><div align="justify"><span style="font-family:trebuchet ms;">Dirigem-se ao bar de Sebastian. É noite e faz muito frio. A música soa alta, porém suave. O olhar amendoado de Itsa é triste e incomoda Sebastian. Tenta animá-la, perguntando se ela já esqueceu Aristóteles. Como poderia esquecer o bom e sábio estagirita? Se todas as pessoas o tivessem lido, poderiam dizer para si próprias coisas que as transformassem um pouco. E, mesmo em silêncio, ninguém escutaria, fosse algo pretensioso ou uma loucura caprichosa desse silêncio. Estranho, as pessoas que conhecia falavam durante tanto tempo. Sebastian sentiu que não conseguiria sustentar a conversa, não hoje. Cansado como estava. Qualquer frase que dissesse sobre o assunto seria de Itsa. Sabia que nenhuma delas lhe pertencia. Soavam de forma artificial em seus lábios. Não eram parte de seu coração, de seu interior. Não respirava o mesmo ar de Itsa e quando tentava, convertia-se num impostor, capaz de forjar sentimentos e palavras. Sua natureza era outra. Chegará o dia em que ela irá perceber, a natureza de ambos não mudará e nada será feito. O destino une as pessoas como bem entende. Apesar de se conhecerem há mais de cinco anos, a distância se aproximava deles. Mais uma dose de uísque, diz Itsa, interrompendo os pensamentos de Sebastian e recriminando-o, desse jeito ainda estará bêbado quando formos visitar o escritor. Sim, mais uma dose com pouco gelo. Algumas mais para espantar o frio. E outras ainda, para comemorar a distância que se instalava. Itsa torna a ficar ausente, olha para os copos que chegam às mesas das pessoas e sente-se desanimar. Quem lhe mostraria, como Henry Miller fizera à Anaís, tudo aquilo que se pode sentir no mundo porque se pode conhecer a vida deste mundo com olhos de completa paixão e transformá-lo em poesia, em sabedoria do coração? A noite foi infinita entre doses de uísque e a sua impaciência para que o outro dia chegasse logo. O que Henry Miller pensaria sobre este lugar? Com certeza iria adorar. E além disso, saberia tirar dessa mesmice noturna algo que não fosse só copos de bebidas, fumaças de cigarros, cachimbos e cheiros que se produzem e se espalham nesses lugares que prometem muito e que nada cumprem. Bares noturnos são promessas não cumpridas. Bebidas repetidas. Cigarros amassados. Cachimbos amarelados. Olhares cansados e sem lucidez. Amanhecer que espera outro anoitecer. Uma nova noite a prometer algo que, talvez, venha a se cumprir. Sim, um dia e então eu não me sentirei tola o bastante por ter acreditado, por ter esperado que copos de vinho se transformassem em uma descoberta de mim mesma. Algumas pessoas que vejo agora, quarenta, cinqüenta anos, ainda esperam descobrir algo que o bar lhes prometeu, quem sabe há quanto tempo, dez ou quinze anos? Quanta paciência. Henrys Millers não nascem em bares. E não esperam que suas promessas dancem numa pista a procura do Santo Graal.</span></div><div align="justify"><span style="font-family:trebuchet ms;"></span></div><div align="justify"><span style="font-family:trebuchet ms;">Quando chegaram para visitá-lo, Itsa logo viu as janelas e portas abertas. Continuava muito frio. Pararam na entrada da casa. Sebastian ficou contente com o que viu. Era uma casa comum, até simples demais para qualquer pessoa. Quase pobre. Poucos móveis, velhos e espalhados sem nenhuma preocupação estética. Itsa frustrou-se momentaneamente. Onde ele estava? Talvez fazendo algo emocionante, raro. Esperava surpreendê-lo em profundas divagações. Ao contrário, encontra um corpo obeso e envelhecido aquecendo-se junto a um forno. Mas ela também fazia isto. Sua mãe aproveitava para assar pão. Sebastian aquecia-se. Seu pai contava piadas. O que ele estava fazendo? Assando pão? Contando piadas para si mesmo em silêncio? A visão do escritor com frio e a casa aberta não lhe pareceu interessante. Desconfortável, diria. Sebastian acabou por fazer um sinal para que voltassem. Neste instante, Heráclito virou-se, era tarde, ele os vira. Leu em suas fisionomias o desejo frustrado.</span></div><div align="justify"><span style="font-family:trebuchet ms;"></span></div><div align="justify"><span style="font-family:trebuchet ms;">‘Entrem meus jovens’, diz ele,‘também aqui os deuses estão presentes.’ Ao ouvir isto, Itsa ilumina o olhar, as palavras dele transformaram o forno antigo e o frio do desconforto, a banalidade da existência. Sebastian perdera o sábado, Itsa sentiu ganhar vários. Porém, o fascínio exagerado do olhar de Itsa sobre aquelas mãos gordas e olhos carregados de rugas escurecidas começou a incomodá-lo. Conteve-se. Permaneceu em silêncio sentado numa poltrona que também deveria ser velha, manchas escuras e rugosas se espalhavam pelo ambiente de um jeito muito natural. Não entendia do que falavam. Recordou-se das noites que passaram na casa dele, quando Itsa lhe dissera palavras tão densas de amor e que chegara a escrevê-las, recordou-se das palavras, recordou-se do amor, recordou-se de outra Itsa, daquela que chegara a possuir e que agora o trocava por aquela criatura corpulenta com um cérebro capaz de juntar as letras para formarem o som que quisesse. </span></div><div align="justify"><span style="font-family:trebuchet ms;"></span></div><div align="justify"><span style="font-family:trebuchet ms;">‘Penso que tudo afinal se resume em entender o amor. Que finalidade quer impor na nossa alma? Não sei. Começamos a nos encontrar. Tu falas pouco, Sebastian, muito pouco. E me olhas estranhamente. E assim como toda tua suavidade e silêncio me encantam, sei que amas algo em mim que não és capaz de possuir. De Itsa para Sebastian, com amor.’ As lembranças flutuam na cabeça de Sebastian, quanto tempo se passara desde que Itsa escrevera isto? Vinte anos? Não. Não mais do que um ano é o tempo que esta partitura existe e, no entanto, flutua distante com a dor muito perto. Eu ficava olhando Itsa tirar a roupa. Eu fazia parte de sua intimidade. Uma intimidade que eu não compreendia. Rezei para que ela não percebesse ou sentisse um vazio sem retorno diante da companhia que não consegui ser. Ao contrário de Itsa, Sebastian nada escreve. Sofre, apenas. </span></div><div align="justify"><span style="font-family:trebuchet ms;"></span></div><div align="justify"><span style="font-family:trebuchet ms;"><strong>As novas partituras</strong> </span></div><div align="justify"><span style="font-family:trebuchet ms;">Os passos de Itsa, lentos, Sebastian tenta apressá-la. Meia hora em silêncio. Itsa rememorando o que ouvira. Sebastian remoendo-se de ciúme com lembranças a atormentá-lo. Sebastian, diz ela, Heráclito não é formidável? O quanto já leu. E a sabedoria da sua alma, então. Que encanto. Leu tudo de Aristóteles, nem acredito. Sim, sim , sim, Itsa, diz ele impaciente apressando o passo antes que ela resolvesse voltar, ouvi umas vinte vezes a bobagem de que ‘a ausência de uma sensação esperada é suficiente para fazer voltar os que acabam de chegar’. Ao que parece, tivemos ambos esta sensação. Você, porém, obstinada, não sairia de lá sem que o velho lhe dissesse algo formidável, dos deuses, não é mesmo? disse ressentido, achei tudo muito ridículo. </span></div><div align="justify"><span style="font-family:trebuchet ms;">Está com ciúmes de um senhor de setenta anos, Sebastian? É certo que você não tem a sabedoria dele, mas ainda é jovem, ela o consola. Você fala como se fosse uma velha, diz ele enciumado. Está bem, Sebastian. Nada há que importa, nada senão entregar-me a este mundo que se abre, incerto e duvidoso. No entanto, é dele que necessito, deste mundo que possui datas incertas, olhares incertos, cores e passos igualmente duvidosos. Tanta adoração pela incerteza da vida funcionava nele como dor, muita dor, maior do que seu coração era capaz de agüentar. O incerto não o atraía. Contudo, o tempo que temos junto de alguém é assim mesmo, impreciso e indeterminado, vacilante e irresoluto. O que estava acontecendo com Itsa? Quem hoje, seguiria as pegadas de um velho, tendo que sublimar sua juventude e conviver com rugas estampadas à sua frente, só porque tinha a sabedoria do coração? A estava perdendo para isto? Sim, a perdia. O que seria dele que a amava tanto? E dela, que estava partindo? </span></div><div align="justify"><span style="font-family:trebuchet ms;"></span></div><div align="justify"><span style="font-family:trebuchet ms;">A noite, em casa, Itsa iniciou um novo diário. Não abandonaria a idéia que parecia salvá-la, apenas a transformaria. Enquanto Henry Miller buscara nos escritores russos a satisfação para o seu descontentamento, ela iria recorrer a alguém já velho e esquecido, mas que numa só tarde havia lhe falara sobre Goethe, Baudelaire e Rimbaud. Sebastian não compreendia a vida como uma ligação sem fim onde as pessoas se condenam e se salvam através de si mesmas e de outras, sem importar que tenham vinte ou setenta anos. A primeira coisa que a frustou seria também a primeira a salvá-la. Buscaria suas promessas, não mais em um bar noturno. Buscaria lá, diante daquele forno enferrujado e daquelas mãos enrugadas. </span></div><div align="justify"><span style="font-family:trebuchet ms;"></span></div><div align="justify"><span style="font-family:trebuchet ms;"><strong>Fim de uma partitura</strong> </span></div><div align="justify"><span style="font-family:trebuchet ms;">As mãos enrugadas se foram. Durante muitos dias Itsa ficara submersa em sua própria angústia. Rodeada pelo tumulto e escuridão que a envolvera, se isolara do mundo e das pessoas. Sabia porque estava fazendo isso. Não queria que ele tivesse partido. Não agora e, no entanto, não pudera escolher. Sentou-se sobre si mesma e chorou pelas coisas que a vida não permitia coexistirem juntas e em paz. Vivemos entre eternos antagônicos: amar ou odiar, falar ou silenciar, viver ou morrer. A vida impõe isto a todo instante, escolhas. Renderia lágrimas e orações a quem tirara Heráclito da vida. Onde depositaria a sua tristeza de mortalidade? Saiu a caminhar. Precisava voltar a viver. E teria que ser perto daquilo que simbolizava a distância da pessoa que mais amara e por tão pouco tempo pudera estar junto a ela. Foi em direção ao cemitério. Também lá houve uma época em que não conhecia ninguém. Agora era diferente. O que poderia haver por detrás do portão de segredos tão obscuros? De imagem tão tristes e fortes? Quisera se perder por entre as escolhas que fazia. Entrou. Quisera se perder por entre os portões tão fechados sobre si mesmos como divisores de dois mundos.</span></div><div align="justify"><span style="font-family:trebuchet ms;"></span></div><div align="justify"><span style="font-family:trebuchet ms;">Anna & os Delírios sobre um Heráclito-Real-Fictício</span></div><div align="justify"><span style="font-family:Trebuchet MS;">Conto publicado em Oficina de Contos 19 </span></div><div align="justify"><span style="font-family:Trebuchet MS;">& Antologia Nacional de Contos Josué Guimarãe</span></div>sandra adria_na fasolohttp://www.blogger.com/profile/10290250930694294016noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-16588935.post-1126394890024092082005-09-30T20:25:00.000-03:002005-09-11T23:38:26.863-03:00O reencontro com o não-filósofo<div align="justify"><span style="font-family:verdana;font-size:85%;">Rimbaud disse que 'sua vida fora, outrora, regada por todos os vinhos, aberta a todos os corações, sua vida fora um festim. Mas, um dia sentou a Beleza em seu colo e a achou amarga, injuriou-a e contra a justiça armou-se. Cheguei a dissipar de meu espírito o último traço de esperança humana. Num salto surdo de animal feroz pulei sobre cada alegria para estrangulá-la. Fiz da desgraça um deus. E andei pregando peças à loucura... sonhei reencontrar a chave do festim antigo. A chave se chama caridade. Essa inspiração é prova que sonhei.' Existências regadas por todos os vinhos e abertas a todos os corações; o primeiro ato: sentar a Beleza no coração; o segundo: armar-se contra si; a arma para isto se chama ceticismo. Para aniquilar a Beleza é preciso antes ter conseguido sufocar e devastar uma a uma todas as alegrias, é preciso ter se tornado um animal feroz para si mesmo para fazer das tristezas um deus particular e dessa inspiração retirar e exterminar esperanças e sonhos. Em meio a tudo isso, um cálice entre os dedos seria desejar cinicamente fazer da felicidade um deus cheio de máscaras, um deus revestido de mentiras. Para descobrir a chave que mantém o brilho do olhar é preciso sonhar sem estrangular, esperar sem provar, beber do cálice do vinho sem receios, a Beleza não volta a se sentar no colo de quem fala sobre a vida, mas que se arma contra ela. Quando o vi novamente eu ainda não havia voltado a tomar champanhe. Fiquei olhando para aquele jeito displicente que só as pessoas com o dom de amar a vida possuem. Senti vontade de ver se o brilho daquele olhar profundo iria aumentar, se o seu toque na minha pele iria provocar mais que calafrios, se o seu rosto enigmático teria algo de filósofo sem o risco de cair na opacidade de um estranho mundo que fala sobre a vida, mas não a vive ou a vive inversamente. Senti vontade de amá-lo, algo nele lhe dera uma certeza, uma apenas, de que a Beleza um dia sentara-se em seu colo e lá permanecera. Esse pensamento acabou por dissipar a imagem do cálice entre minhas mãos, era a minha prova; a prova de que a inspiração rimbaudiana cabia ainda e também a mim. Voltei para as cafeterias e fumaças variadas de cigarros e cachimbos, não sem o sentimento de não ter resgatado o já perdido, porém, agora, sempre que peço uma taça de café ressoa em meus devaneios a musicalidade de Poe: <em>c’est ça et rien de plus</em>? </span></div><div align="justify"><span style="font-family:Verdana;font-size:85%;"></span></div><div align="justify"><span style="font-family:verdana;font-size:85%;">Anna & e o Reencontro com o Não-Filósofo & uma passagem rimbaudiana de <em>Une saison en enfer</em> </span></div>sandra adria_na fasolohttp://www.blogger.com/profile/10290250930694294016noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-16588935.post-1126394743399768552005-09-29T03:18:00.000-03:002005-09-12T01:01:20.706-03:00Filósofos não combinam com champanhe<div align="justify"><span style="font-family:trebuchet ms;">De um jeito atrapalhado deixei cair de minhas mãos o livro de <em>Dylan Thomas</em> assim que cheguei. Ele juntou e quando foi me devolver disse, "estou sem voz, sem voz normal". Falava como se sussurrasse. Após alguns minutos outro sussurro: 'podes beber champanhe sem problema algum.’ Olhei para ele me sentindo <em>déplacée</em>, pois há muito tempo não tomava uma taça sequer. Mas, por que razão não? Veio em meus pensamentos a explicação de que o champanhe não combina com qualquer companhia, combina com vida. Filósofos não possuem muitos motivos para se misturarem ao líquido. Quem_ com o olhar opaco e sem brilho_ poderia ser visto com uma taça entre os dedos e parecer vivo? Realmente vivo? Amando a existência? Não conseguia imaginar um filósofo em tal cena, as que lhe vinham em mente eram imagens de cachimbos e cafeterias, fumaça e muita cafeína para embalarem frases imperativas e pedantes e, mais tarde, em suas noites melancólicas e solitárias, entoarem hinos a deuses que são desprezados somente quando mencionados à meia-luz de outras faces com expressões furtivas em seus discursos céticos e falsos, mas afirmados como toda a verdade possível. Uma espécie de Fichte às avessas: o mundo como um reflexo da pupila sobre este mesmo mundo_ e que o faz ser nada mais do que aquilo que pensamos, sentimos, percebemos e desejamos que seja. Presumo que o idealismo, quando surgiu, incentivou a esquizofrenia por todos os lados do planeta. Nem todos têm uma estrutura de pensamento que possa lhes permitir um 'ato de fé' nas suas 'próprias pupilas' sobre o mundo. </span></div><div align="justify"><span style="font-family:trebuchet ms;"></span></div><div align="justify"><span style="font-family:trebuchet ms;">Anna_ o Vinho dos Não-Filósofos & os Idealistas Esquizóides </span></div><div align="justify"><span style="font-family:Trebuchet MS;"></span></div>sandra adria_na fasolohttp://www.blogger.com/profile/10290250930694294016noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-16588935.post-1126394014980702122005-09-28T20:11:00.000-03:002005-09-11T23:36:30.423-03:00As meias de Itsa<div align="justify"><br /><span style="font-family:trebuchet ms;font-size:85%;">Quando ele vinha caminhando em minha direção seus olhos e seu sorriso me enchiam de alegria. Sei que é bobo dizer isto, mas me sentia assim nestes momentos. E não é bobo dizer aquilo que temos certeza de sentirmos. O amava em pequenas fantasias. Tinha medo. A certeza de que ele amava com muita suavidade me encantava. Eu sabia, o toque seria suave. Talvez não precisasse nem ao menos do toque e ainda assim sentiria a leveza de seus dedos acariciando meu rosto. As fantasias aumentavam. O foco não era mais eu. Era a suavidade que ele possuía e que eu amava, transparente para meus olhos. Pensei, tudo afinal se resume em entender o amor. Que finalidade deseja impor em nossa alma? Não sabia.<br />Começaram a se encontrar. Falava pouco e, no entanto, olhava-me estranhamente quando vestia minhas meias. Assim como toda aquela suavidade me encantava, sabia que ele amava aquelas flores pequenas bordadas com tanto cuidado pela minha avó.<br />Ficava olhando Itsa tirar toda a roupa. Depois abria a bolsa a tiracolo e tirava de dentro o mesmo e sempre par de meias: de crochê bege com pequenas flores vermelhas. Menores que seus minúsculos pés. Então eu observava Itsa vesti-las. E eu fazia parte de sua intimidade. Ela, quase completamente nua, se não fosse pelas meias que usava. Perguntava a mim mesmo: e quando elas furassem, rasgassem, tivessem o fim que todas as meias têm um dia. O que Itsa faria? Compraria outro par, já não mais com flores vermelhas? Pediria para sua avó costurá-las? Não. Não havia mais avó. E Itsa não sabia costurar_ meias que fossem. Talvez não me quisesse mais quando as meias chegassem ao fim. Itsa tinha, realmente, uma intimidade que não compreendia.<br />Artur, então, rezou para que o crochê tecido fosse forte, resistente. Gostaria de ver aquelas flores vermelhas ainda por muitas primaveras.</span></div><div align="justify"><span style="font-family:trebuchet ms;font-size:85%;"><br />Anna K. & A Adoração por Meias de Crochê </span></div>sandra adria_na fasolohttp://www.blogger.com/profile/10290250930694294016noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-16588935.post-1126491399142861542005-09-27T23:12:00.000-03:002005-09-11T23:28:00.316-03:00A Velha de Belas Faces<div align="justify"><span style="font-family:trebuchet ms;">Já amaste uma mulher assim?, fora a pergunta que eu ouvira da Velha de Belas Faces. Muitos já devem ter ouvido de alguém, algum dia, seja num lento murmurar, seja por lembranças de rendas brancas a cair por sobre suas mãos ao ouvir a mesma pergunta. O que eu poderia ter respondido? Limitei a centrar minha atenção na pele escurecida, a contrastar com os seus cabelos brancos, acompanhado da impressão de que só seus olhos ainda viviam. Observei, ainda, o corpo movimentar-se devagar, exalando o cheiro forte e próprio da velhice, só e tão somente da velhice, odor que existe para lembrar que a morte encontra-se bem próxima. Nunca conseguira definir o cheiro característico dos velhos, as minhas sensações?, bem, apenas se recusavam a compreender o por quê do nosso corpo tornar-se lúgubre também nisso. Percebi, então, que a delicadeza que eu supunha existir na minha imaginação e que eu esperava inocentemente salvar, transformara-se dentro de mim em algo rude, primitivo, quase subumano. Como, ainda, ser o mesmo?<br /><br />A Velha esperava uma resposta. Uma antiga cadeira, uma cortina acinzentada, uma pequena mesa redonda, sim, ela esperava uma resposta. Eu nada tinha para dizer-lhe, meu desespero estampado na face e o amor que eu sentia por uma jovem, uma mulher, era tudo o que eu possuía. Não queria responder, sequer continuar olhando para a Velha de Belas Faces. Pensei na razão de ter procurado alguém que eu desconhecia. Acabei por falar algumas frases soltas, sim, é claro, já amara com tal intensidade. Ela deixara escapar um riso que só pertence àquelas pessoas que muito já sabem sobre a vida, sobre a dor e que não mais poderia se permitir o espantar-se com a aflição exagerada que eu, também, talvez como muitos que outrora já haviam estado naquela sala, tentara, em vão, conter. ‘O que sentes acabará por destruir-te, meu jovem, até que não queira mais viver.’ Suas palavras cruéis fizeram com que eu lembrasse da primeira vez que vira Soila, sentira meu abdômen gelar como se a presença dela despertasse uma estranha dor física. Soila vivia como se suas verdades não se encaixassem para o resto das pessoas a não ser para si própria. E, no entanto, eu não conseguia impedir-me de senti-la. Nunca a tivera realmente. Era apenas levado para longe pelos seus dedos suaves quando tocavam-me a face, um sutil impulso que acabava por me confundir. Eu fingia não ser assim, mas como um menino solitário, a usar sempre o mesmo disfarce de castelo fortificado, eu compadecia-me de mim próprio, enquanto ela continuava, naturalmente, a acariciar o meu rosto. Assim, eu resolvera escrever com letras enormes em minha memória, qualquer coisa para eternizar o que o amor estava a representar para mim, dentro de meu mundo venenoso e cheio de promessas vãs.<br /><br />Em todo meu desânimo e lentidão de existir, senti-me pior do que qualquer momento que pudesse recordar, porque sempre a dor do presente é maior do que qualquer outra já vivida, parecia ser o preço de se estar vivo. Quisera ter ouvido palavras que me incentivassem a lutar por Soila e por mim mesmo. Quem sabe a Velha de Belas Faces tivesse se equivocado?, não, não faria nenhuma diferença, já escutara suas palavras e, embora ela pudesse ter se enganado, não conseguira voltar ao significado original do que sentia. Não seria melhor morrer antes de tudo?, ou seria tão covarde assim, ou não?<br /><br />No outro extremo da cidade, uma bela jovem, rodopiava pela sala, dando voltas e mais voltas. Sabia que o meu amor pertencia a ela acima de qualquer coisa. Sabia disso sem nunca ter tido certezas em sua vida. Soila não se importava com fatalidades. ‘Todos temos uma, muito bem guardada para surgir quando menos estamos a esperar, no momento a minha está a me fazer feliz, o que já vale qualquer coisa ainda não revelada, Augusto.’ Dissera, além disso, que não iria procurar significados obscuros, quem sabe inexistentes, apenas porque não conseguia ver por onde ir. Eu suara frio durante toda aquela noite, sim, sonhos confusos entraram dentro do meu corpo perturbando-me por várias noites. Eram sonhos protegidos pela memória de minhas sensações, nada pude fazer contra eles. No sofá, deixei-me ficar. Permanecer assim talvez fosse melhor do que viver e aquela dor esquisita, que sempre me derrubava em meio a lençóis e idéias absurdas, fez com que eu pensasse que sumir em um breve estado de inconsciência poderia salvar-me de sumir para sempre.<br /><br />Não estivera a depositar em Soila a miséria do que tinha sido meus dias?, sim, meus dias diante de Clara, a verdadeira esposa, a quem eu já amara por tantos anos, um outro tipo de amor, mas não menos verdadeiro. Prostrada na cama, Clara não era mais uma mulher. Moribunda há tanto tempo. Eu, também, de uma outra maneira, encontrava-me moribundo em minha própria miserabilidade. Convivera com a morte, que hesitara em aparecer, dia após dia, arrastando a pobre Clara num sofrimento sem fim e eu a culpar-me por não amá-la quando ela mais precisara. Tudo é tão vago, as coisas vem e vão em momentos imprecisos, a vida se mostra cruel quando mais queremos viver. A culpa é que acabara por me destruir? Apenas, eu fora fiel ao que sentira, tantos já haviam tido este direito que naquela época eu acabara por pensar que talvez tivesse chegado a minha vez. Era terrível, além do mais, viver sem paixão.<br /><br />Passeávamos juntos como pessoas com aparência de normalidade simplesmente por passearem juntas. Como custava ao meu ser este parecer normal, quando a normalidade era o princípio do meu mal-estar. A última tarde em que estivera com Soila, ela rompera o silêncio ao falar sobre a Teogonia de Hesíodo que estava a ler. Lembro de ter dito a ela que Hesíodo vivia para os deuses e que não vivíamos para ‘deuses’, mas para nós mesmos. Juntei as mãos dela contra as minhas em um toque desesperado, que em silêncio eu perguntara: como ela podia falar sobre a Teogonia diante do pouco que poderíamos viver? Acusara-me de ignorar e desprezar o que fazia parte de seu mundo. Eu fora bastante insensível, pois Hesíodo, naquele exato instante, jamais poderia ter me ajudado, a origem dos deuses não era a origem do que eu sentia por ela. Caminhamos mais um tempo em silêncio e o som das botas de Soila nos pedregulhos, soara a mim como uma contagem de minutos, minutos que não significavam o que eram para o resto da humanidade, não naquela hora, para mim era o tempo que ainda ficaríamos juntos. Mas, a questão já não era Hesíodo. A minha sensibilidade nunca iria mudar, pois, na verdade, eu pedira desculpas pela minha própria in-sensibilidade. O que haveria de errado com ela? O que Soila queria que eu tivesse pensado? Ou feito? ‘É provável que tudo vá muito além de sensibilidades e emoções que nos tiram toda a lucidez de que precisamos para viver’, ainda ouvira ela dizer, e eu, que buscava ser tão confortável em minha própria existência, decepcionado, entristeci-me continuamente com meus pensamentos. Enfim, o que era agir sempre sem nenhuma diferença? Será que não era o mesmo que morrer sem saber que morremos?<br /><br />Não importava que eu não mais a visse, pois eu fazia parte daquele velho bairro suburbano, por onde nos encontráramos tantas vezes, muito mais do que em qualquer outro lugar que já estivera. As casas velhas de dois andares, quase sem pintura, ruas estreitas com entradas e saídas formando labirintos úmidos e sujos, que não combinavam em nada com deuses e coisas desse tipo, fizeram com que eu pensasse que se tivéssemos falado de Edgar Allan Poe, e recitado o ‘Corvo’, acabaríamos por envolver nossas vidas na musicalidade certa de versos e melancólicas sombras, como era o nosso amor. Isto fez com que eu perguntasse para mim próprio: como um amor poderia sobreviver somente a isto, a um lugar em que as frases, por mais fortes que pudessem ser, não gerariam jamais um tempo de sonhar?<br /><br />O que é, então, a vida para os outros que continuam enterrados em suas próprias existências?, quando somos nós mesmos enterrados nas nossas? Desagradável, nada mais aconteceria em minha vida? Quis tapar parte do meu rosto, que às vezes, suava muito e se tornava pegajoso; outras vezes sentia frio como se ocultasse uma geleira e eram nestes instantes que eu percebia o quanto a busca de um conforto existencial se apegara à minha pele, talvez à minha alma, reproduzindo angústias que eu tentava manter por debaixo de alguma coisa que eu julgava ser suave, mas que se transformava em uma tristeza sólida e contida. Queria uma outra dor, aquela dor que se espalha pelo universo através do movimento de pessoas que nada exigem de seus pensamentos, quisera esta dor só pelo prazer de ter algo que ultrapassasse os limites do meu desespero, para me sentir como se andasse pelas ruas, como se, ainda, fizesse parte do mundo sem que eu precisasse estar diluído dentro dele. Ou dentro de meu próprio desespero. Soila se fora.<br /><br />Imaginava, que um dia eu veria o tecido de minhas roupas gasto pelo tempo. Mas o que eu conseguira, também, desgastar fora a minha esperança, concedera-me um olhar que parecia existir sozinho, sem que meu corpo tivesse ainda alguma importância. Meu olhar passara a carregar o corpo. Rápido pela calçada, eu pensava em Soila. Pensava em Clara estendida na cama, no seu banho, no jantar e na conversa que se tornara árida, acompanhada da pergunta oculta que havíamos acostumado a ignorar: quando chegaria o dia em que eu entraria no quarto e ela não mais estaria lá? Ela via nos meus olhos um apelo sem resposta, um olhar sem brilho e o ar de quem se despede, sem que possa despedir-se. Um pouco úmido. Embaçado. Definitivo. Há quem preferisse o nada à dor, sempre há. Mas não tinha mais importância, estava começando a não ter mais as certezas do que pensava.<br /><br />Caminhei sem cessar e sem rumo durante meses. Naquela noite caíra uma garoa fina e desagradável. Não podia viver o amor, precisava destruí-lo. Lembrei-me da Velha de Belas Faces... ‘o que sentes vai acabar por destruir-te, meu jovem’. Ela quase acertara. O que precisava fazer era destruir o que eu sentia, só isso, somente isso, tão simples e tão perto do possível. Encostei-me na parede de uma das casas do subúrbio por onde Soila e eu muitas vezes tínhamos passado, agora completamente molhado pela garoa que se transformara em forte chuva, com uma única vontade, ficar ali até que algo que ainda não se mostrara para mim, surgisse para arrancar-me das certezas que esburacavam minha alma. Clara estava morrendo. Maldita doença degenerativa, espalhada por todo o corpo. Andando ainda pelas ruas do subúrbio, eu sabia, não restava mais nada, só o amor por Soila e que precisava expulsar de dentro de mim. O que fiz de minha vida? O que fiz foi quase nada, dilui minhas emoções e contentei-me com isto. Minha vida extinguira-se de um momento para outro, não havia nada a ser feito.<br /><br />Quando amanheceu e como eu não voltara para atender Clara, pois passara a noite inteira perambulando pelas ruas da cidade, ao chegar em casa encontrei-a dormindo, um sono pesado. Observara alguns minutos e, como ela não se mexesse, saíra do quarto. ‘Bom que ela estivesse dormindo como há muito tempo não a via fazer, não iria perceber que nem ao menos a beijei na face como de costume, que não a toquei, o quanto me esforçava por dar-lhe ainda um carinho, acabava por sentir uma culpa maior ainda. Mas ela talvez estivesse mais viva do que eu próprio.’ Sim, pensara isto e ela nem ao menos ainda estava realmente ao meu lado. Não foram minhas últimas palavras para ela, foram meus últimos pensamentos.<br /><br />Hoje, só tenho uma certeza: a de que o amor não vivido só serve para nos destruir por dentro. Então, depois de estar só, totalmente só, penso em Camus, ‘suicidar-se ou não’, talvez já tivesse feito isto há muito tempo, porém continuava vivo, era uma estranha forma de morrer, diferente do que fora a morte para Clara. Pego, então, o copo de uísque, olho através das cortinas e percebo que há dias não saio do meu quarto. Nunca mais voltara na Velha de Belas Faces. Nunca mais vira Soila. Uma vida repleta de nãos. O que pode restar, ainda? O tempo, sim, é o que me resta. Mas, o que é isso, o tempo? O mesmo tempo que me envelhece, que enche minha face de rugas e deixa meu corpo impregnado do cheiro da velhice, é também aquele que está sempre por chegar, insistindo em construir novos sentimentos, só para que possa ter o que esquecer mais tarde. ‘De que modo poderia diminuir ou aumentar um futuro que ainda não existia?’ O que fazer com o passado que aumenta, se ‘na alma existem as três coisas, presente, passado e futuro?’ Esperaria o futuro, não sem a dor, que só o tempo que brinca com rugas, cheiros e tristezas, consegue impregnar na nossa alma. Ou, quem sabe, esperaria agora só pelo passado que minhas lembranças e meu imaginário podem, ainda, transformar em qualquer coisa que não seja simplesmente a ‘delicadeza de imaginação’ que não soube ter, porque não nasci para tê-la, porque não nasci para ‘deuses’. Volto, então, para a teogonia que construi, porque não soube ver quando alguém olhou para mim com os olhos de quem encontra um homem com alma. Porém, posso dizer, já não mais a tenho.</span></div><div align="justify"><span style="font-family:Trebuchet MS;"></span></div><div align="justify"><span style="font-family:Trebuchet MS;">Anna Karenina & A Velha de Belas Faces</span></div><div align="justify"><span style="font-family:Trebuchet MS;">Conto publicado na Antologia Livro das Mulheres </span></div>sandra adria_na fasolohttp://www.blogger.com/profile/10290250930694294016noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-16588935.post-1126380087546915272005-09-26T16:17:00.000-03:002005-09-15T00:56:46.543-03:00Deus já ia longe, quase dobrava a esquina<div align="justify"><br /><br /><span style="font-family:verdana;font-size:85%;">A porta era logo ali, não seria difícil alcançá-la em alguns segundos. Tempo suficiente para que ele tentasse detê-la. Quisesse pegasse um táxi, dissera a voz arrastada. Anna compreendeu que segundos ou horas não fariam mais diferença. Sim. Pegaria qualquer coisa para ir embora, atravessaria a cidade a pé, se necessário. Madrugada, não estava frio, alguns chuviscos molhavam superficialmente o cabelo e a roupa, davam a impressão de umidade. Desagradável. Não. A noite é que, a partir de certo momento, tornara-se desagradável. Como alguém pode transformar-se noutra pessoa após algumas taças de vinho? Ainda em frente ao restaurante, teve vontade de voltar. Recusou a ajuda do porteiro que se prontificara a chamar-lhe um táxi. Caminhou diversas quadras e nada. E agora, o que fazer? Não havia ninguém na rua às três e meia da manhã. Não voltaria ao restaurante, suas convicções é que estavam em jogo e não o medo de ser assaltada. Era insuportável ficar à mesa vendo dois homens que se julgavam inteligentes passarem à quinta garrafa de vinho tinto. Se contara direito, já eram quatro Condes de Rotschild a produzir piadas de mau-gosto, grosseria e muita lamúria. Os gênios mal-compreendidos bebiam, alternavam risadas estridentes com a expressão idiota de que o mundo não os compreendia. Degradante. Como falaram bobagens, meu Deus. Só podia estar agora caminhando nessa escuridão sem saber para onde estava indo, como chegar em casa. Nunca perdoaria Carlos Augusto por isto. Parou na esquina, um carro passou e o homem que dirigia fez um sinal. Não, não era mulher da vida. Bom, se fosse resolveria o problema. Virou o rosto e ele desistiu. Viu que na metade da quadra havia movimento de pessoas. Talvez fosse um outro bar. Começou a dirigir-se para lá quando um carro parou novamente e alguém perguntou se não estava muito solitária. Quase gritou que não e passou a caminhar mais rápido. Na entrada do bar observou um ambiente de outros que já deviam ter bebido muito mais do que cinco garrafas de vinho. Perguntou ao garçom se tinha telefone para chamar um táxi. Sim. Só pode usar se tomar algum drinque. Que absurdo. Pelo menos estava mais segura ali dentro e um drinque talvez a acalmasse um pouco. Gin-tônica. Não. Gin puro sem gelo. Quero ficar anestesiada. Bebeu. Pediu mais um. Bebeu. Pediu outro. Acabou sentando numa roda em que os drinques eram de várias origens e onde as bobagens eram diversas. Resolveu falar besteiras junto com eles. Falou muito, mal acabava uma frase não sabia o que havia falado na anterior. Pode ser que tivesse repetido a mesma por horas ou durante o resto da noite. Era o medo que a arrastava para longe dele, não era ela, mas o medo de que noites desse tipo se repetissem de vez em quando, seria insuportável. Sim, a eventual taça de vinho se transforma nas mesas de bares. Baudelaire, meia garrafa eventual e por hábito, e a certeza de que outras mais revelam no homem, que é mau por natureza, a crueldade triplicada. Hora do táxi, cinco da manhã. Levantou-se e pediu para o garçom que fizesse a chamada. Despediu-se de todos e foi para a calçada. Ainda chuviscava, havia neblina, névoa, ameaçava chover e esfriar bastante. O inverno se aproximava e logo estaria chegando em casa. Boa questão. Iria para a sua ou para a dele? Melhor ir para a sua, pensou. Sabe-se lá o que o vinho pode produzir além de lamúrias. Táxi. Endereço. Táxi novamente. Outro endereço. Estava se cansando de ir para todos os lugares e não pertencer a nenhum. Como se fugisse ou estivesse protegendo atitudes consideradas imorais. Sim. Táxis servem para levar até o aeroporto e para fugir. O gin produz, entre outras coisas, choro. Começou a chorar e o taxista perguntou se estava bem. Sim, meu daschund morreu esta manhã e saí para esquecer. Foi um bom companheiro por quatro anos. Bom motivo para chorar, disse ele, a morte de um cão sempre é triste. Anna pensou que seu cão era invisível, mas que a morte de um companheiro de quatro anos era real, bem real. Lembrou de Carlos Augusto. Apertou o choro. Borrou a maquiagem. Sentiu a miséria da vida numa história que não era verdadeira dentro de um sentimento que era mais que a verdade, era sentimento. Sentimentos não deviam existir, produzem taças de vinho coloridas e mais tarde amassadas e esquecidas no armário da cozinha. Acabam por ficar atrás das xícaras de cafezinho, da cafeteira italiana e das migalhas de pão francês do início da semana. O carro estacionou, o taxista ainda falava qualquer coisa como os cães dão mesmo muito trabalho, bateu a porta do carro e ainda com os olhos lacrimejantes viu alguém sentado no cordão da calçada, uma garrafa entre as pernas. Quem sabe sentasse ali com o estranho para ver o dia nascer, enquanto algo terminaria de morrer dentro de si? A morte é necessária à vida e aos sentimentos. Melhor que um deles suma da nossa frente do que nós diante do mundo. Uma grande taça de vinho amarelo, o mundo. O cristal puro, que um dia tinha sido promissor, acaba por ficar com o conteúdo amarelado pelo que vem depois. Nós fazemos o mundo amarelado até que a taça quebre ou o líquido apodreça de vez e dê náuseas em quem ainda ousar tomá-lo. Se tivesse a taça na mão salvaria o mundo, já que deus não tem coragem de atirá-la para bem longe. Ainda tem aí um drinque sobrando, pergunta chorosa para o desconhecido de cabeça baixa, com os olhos grudados na garrafa de vinho. Ele levanta os olhos injetados do líquido bordô e ela acha que o conhece. Sim. É ele, o homem que deixou no restaurante, Carlos Augusto. Qual seria a classificação desse exemplar de Conde de Rotschild que ele carregava agora? Oitava garrafa, diz o namorado, há duas horas que estou aqui sentado, te esperando, e há mais de quatro anos que estamos juntos e não estamos. Onde você estava? Na missa do primeiro horário, disse, maldosa. Deveria ir de vez em quando, antes de produzir ódio em quem te ama. Se você me amasse, não sentiria ódio como diz, tentaria me compreender, resmungou Carlos Augusto. Desculpe, esqueci que você ainda acredita em casamento com flores de laranjeira, promessas de companheirismo na saúde e na doença, na alegria e na tristeza. Não dava para acreditar, era o seu amor que estava ali, naquele cordão de calçada, àquela hora do amanhecer, a sua espera. Será que ele estava feliz ou ela é que tinha bebido demais? Não. Ele estava feliz. E muito. Comoveu-se. Ela decidiu que apostaria nas folhas de laranjeira. Sim, Carlos Augusto, eu aceito, casaremos amanhã mesmo, disse. Roupa amarrotada e suja, o olhar entornado, água ou vinho?, ele não disse uma palavra. Atirou a taça no meio da rua, virou-se e precipitou-se a caminhar. Não correu atrás dele. Não. Precisava ter certeza da cor do líquido que se espalhara antes que desaparecesse por completo entre os vãos das pedras. Correu para o meio da rua, ajoelhou-se, rasgou a meia e raspando a pele nas lajes sem simetria tentou fixar os olhos, mas não conseguiu ver a cor. Tudo estava acabando. Deus afinal se decidira. Anna Karenina ajoelhou-se, acabara de testemunhar o supremo ato de rebeldia. Deus já ia longe, quase dobrava a esquina. </span></div><div align="justify"><span style="font-family:Verdana;font-size:85%;"></span> </div><div align="justify"><span style="font-family:Verdana;font-size:85%;">Publicado in: Oficina de Criação Literária Assis Brasil Contos de Oficina 19</span></div><div align="justify"><span style="font-family:Verdana;font-size:85%;"> e na Antologia Concurso Nacional de Contos Josué Guimarães 1997</span></div>sandra adria_na fasolohttp://www.blogger.com/profile/10290250930694294016noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-16588935.post-1126394169385420762005-09-25T20:14:00.000-03:002005-09-11T23:34:23.333-03:00Depois de Santander<div align="justify"><br /><span style="font-family:trebuchet ms;font-size:85%;">Já não faz tanto frio. Canso da Espanha. Estou passando pelo túnel da rua Péron. Escuro, repleto de neblina, poucos pensam em entrar. Entro, como sempre nas tardes chuvosas e não chuvosas. Passos lentos, cada vez mais vagarosos. Continuo caminhando e meus olhos aos poucos se acostumam à escuridão e ao mau cheiro. Tipo de lugar só para quem não sente mais nada com o que vê. A sensibilidade fica nos meus passos nesse imenso corredor cada vez que o atravesso. Estou chegando ao final. Venço o escuro. O mau cheiro. O medo dos outros. Sinto-me bem. Levanto os olhos para a claridade que me incomoda. O mundo deveria ser só noite. Eu deveria ser só noite e nada mais. Ando muito tempo calado. Não consigo ser sociável, conversar sobre as plantas, o carro que não funcionou, o filme que está passando ou simples palavras de cortesia. Tudo muito chato. Meu roteiro não sei qual é. Melhor estar perdido que alienado num ir e vir. Com ou sem roteiros. Ou túneis. Ou quando já não se sente mais nada pela dormência que a alma exige, sem a qual não poderia sobreviver. Enlouqueceria. Talvez completamente embriagada. Enquanto puder andar, seguirei as pegadas do túnel e fugirei de roteiros nos quais se deduz a vida de uma forma muito fácil e nojenta. Ia me esquecendo. Me chamo Martín Henriquez e moro em Santander, norte da Espanha, desde que nasci. Mais precisamente na Plaza Mayor, número sete, terceira casa à esquerda e a segunda mais antiga do subúrbio. De volta à claridade, vejo nos meus sapatos resíduos do túnel. Estou sempre de calça e camisa ou pulôver pretos. O gosto do cigarro não é o mesmo, talvez impregnado do cheiro forte de umidade e mofo que habitam o lugar.<br />Helena estava entediada. Há muito que já sentia um profundo vazio. No aeroporto o alto falante anunciava o embarque imediato. Helena, como sempre, estava atrasada. Respirou fundo. Chegar em Santander com chuva não era um bom presságio. Procurou se desvencilhar das centenas de pessoas que estavam no aeroporto e pediu ao motorista do táxi que a levasse para o Hotel. Viajar sozinha também a angustiava. Decidiu caminhar por perto do Hotel. Depois de andar por algumas ruas estreitas e assimétricas, percebeu estar perdida. Neste momento viu um rapaz saindo de um túnel à sua direita. Parecia a visão de um filme de terceira categoria. Um túnel enfumaçado e sujo e a personagem aparecendo do nada como se fosse o filme em preto — toda a sua roupa — e branco — toda a palidez de sua pele. Viu que ele levantou os olhos em sua direção. Aproximou-se com passos incertos. Precisava saber como voltar ao hotel. Sim, ele conhecia o local, estava bem distante — disse de forma displicente, com o cigarro entre os dedos. Seria melhor se pegasse um táxi ou se quisesse poderia atalhar pelo túnel, de onde ele viera.<br />— Pelo túnel — repetiu Helena, olhando para a escuridão fétida.<br />— Sim, túnel — disse ele, obviamente brincando, não acreditando que uma turista pudesse passar por ali. Olhava detidamente para Helena. Os saltos das botas que usava eram bem finos. Roupa impecável. Nenhum acessório preto, vestia bege.<br />— Bom — decidiu — você poderia acompanhar-me, então ?<br />Será que falava sério? É claro que a levaria para o outro lado. Começaram a caminhar. Martín sentiu novamente o escuro tão familiar. Deu-se conta, no entanto, que nunca havia feito isso. Nunca fizera o caminho inverso. Desorientou-se por alguns instantes. Ouviu que perguntava seu nome. Martín Henriquez. Helena di Tchenzo. O túnel parecia mais longo na ordem inversa. Como se estivesse no retorno de uma viagem — pensou Martín — como se visse os pensamentos voarem com a velocidade ruidosa dos passos, para trás. Como se o caminho marcado nas botas que ambos usavam tivessem a ver com lembranças. O cheiro forte de restos deteriorados fez com que pensasse na morte. E ela, o que estaria pensando? Ela, que era turista?<br />— Se tudo na vida que possui um cheiro semelhante a este é pressuposto para algo ruim, então a morte não deve ter nenhum brilho. A morte cheira muito mal — disse ele com uma voz bastante triste.<br />Pena, não podia ver seus olhos, pensou ela. Talvez estivessem mais tristes que sua voz. Mais alguns passos em silêncio, Martín se calara e Helena nada dissera.<br />— Sim — diz ela, depois de perceber que ele não continuaria a falar sozinho — a morte deveria ter cheiro de flores sem que elas estivessem presentes. Cheiro de luz sem que precisasse existir velas. Cheiro do outro mundo e não da morte que todos conhecemos — em parte, pensou ele.<br />— Martín — disse Helena, após alguns minutos — se a morte fosse algo bom então não precisaríamos viver. Se você não existisse eu não o conheceria. A morte existe e é só isso.<br />— Só que ela, Helena, é preta, chorosa e injusta. Bastante silenciosa. O silêncio me assusta às vezes. A você, não?<br />Sim, também a assustava. Na maior parte do tempo. Morrer é cair num silêncio eterno. A não ser que a alma possua sons — o que não é provável. O silêncio — continuou ela — começa no primeiro dia.<br />— Esperamos por ela sem esperar — disse ele. — Não sabemos quando chegará, não é verdade?<br />— Esperar é difícil. Ser mortal também, só que não é escolha. Perde-se a liberdade do corpo.<br />— Talvez possamos comparar com uma passagem gratuita, sem data, nem horários, se vamos acompanhados ou sozinhos. Um bilhete resumido. Todos o possuem — Martín concluiu.<br />— Sim, porém há aqueles que guardam numa gaveta e nunca abrem e outros que o carregam no bolso onde quer que possam ir.<br />— Quem sabe consideram importante um papel sem data? Sem assinatura — disse ele, enquanto isso ela olhou para o seu rosto contraído, pois haviam atravessado o túnel e já conseguia distingui-lo.<br />Talvez seja simplesmente um lugar ao céu. Não mais do que isso, pensou ela. Preferiu não dizer. Agradeceu a ajuda e pôs-se a caminhar de volta ao Hotel. Bem mais próximo do que ela imaginara — pensou Martín enquanto esperava que ela desaparecesse. Estranho, ela me passou a sensação de que pensava na morte como se já a conhecesse. Mas ela estivera com ele há poucos minutos. Vivia. E era linda. Muito linda com aqueles olhos negros que escondiam algo atrás da expressão ausente e fria.<br />Martín levantou-se com um peso enorme sobre os olhos . Seus sentimentos dilatavam-se por todos os lados. Não soube quais eram. Não era bom nisso. Foi até a cozinha. Remédios. Saiu para a rua. Estava ainda frio. Muito frio. Foi ao encontro da primeira bebida quente. Entraria no Café Péron. Abriu a porta e seus olhos se detiveram :<br />— Como vai, Helena? — sorriu, maroto — vieste pelo túnel?<br />— Não, Martín — disse ela, bastante alegre para aquela hora da manhã. — Sente-se comigo para tomarmos algo.<br />A voz de Helena denotava pontos de interrogação em cada palavra. Ela não se parecia com um desses pontos. Olhou detidamente. Sim, estava mais para linhas acentuadas, sujeito indeterminado com vários complementos que o deixavam com as mãos úmidas. Pediu café expresso. Helena pediu dois sanduíches de presunto e queijo. Comia com grande apetite. Devia ser saudável, acompanhada de felicidade eterna. Recriminou-se pelos seus pensamentos irônicos em relação a ela. A verdade é que estava na defensiva. E se a convidasse para jantar ?<br />A noite não foi um conto de fadas. Aliás, de fada só havia a presença de Helena. Após algumas besteiras, finalmente — para alívio de Martín — saíram do restaurante. Quase esquecera de pagar a conta. Levara um susto do total, pois havia muito tempo que não ia a lugares tão caros. Quando ela lhe perguntou onde era o toilete, por pouco não a mandou para a cozinha.<br />A casa de Martín era antiga, a pintura cinza já não era mais cinza. Adquirira sua própria cor. Helena sentou-se na poltrona azul de veludo. Ele foi fazer o café e aproveitou para tomar os remédios os quais também tinham uma cor esquisita. Estava a olhar se a ordem se encontrava correta quando viu que ela parara atrás :<br />— O que são esses inúmeros vidrinhos na prateleira, Martín ?<br />— Complexos vitamínicos — disse ele — já que não tenho o hábito de uma boa alimentação.<br />Helena ficou olhando. Nossa, eram oito vidros. Ouviu ele dizer, "o último é para a alma." Falou rindo, achou que ela é que precisava um pouco do remédio. Martín limitou-se a despejar algumas gotas na boca e devolvê-lo à prateleira. Helena não acreditou que precisasse daquelas gotas do oitavo vidro. Ou de algo em particular além do túnel e de suas frases estranhas. Fez o café em completo silêncio sem aparentar constrangimento. E porque haveria de tê-los ? A casa não era linda, mas afinal, era sua história. Ficou olhando, na frente de Martín, o pó de café, atrás dele, a menos de dez centímetros, dois pares de sapatos pretos jogados como se há muito tempo ele não os calçasse. Velhos e esquecidos. Voltou para a poltrona de veludo — a única que parecia sorrir. Ela jogada no veludo e os sapatos na cerâmica empoeirada. Ficou assim displicente por uns cinco minutos. Ele apareceu com as duas xícaras de café, sentou-se na sua frente. Helena lembrou-se que viajava dali três dias de volta à Itália. Quando voltasse talvez Alberto não lhe fosse tão familiar quanto antes. Com certeza, não ficara como os sapatos de Martín — esperando-a entristecido. Não, ele sabia se fazer lembrar por outras pessoas, as mulheres em especial. A distância é sempre perturbadora. Quem sabe chegasse na Itália mais preocupada com os tristes sapatos que vira na Espanha do que com a vida trivial que levava com Alberto. Seus sapatos nunca seriam tristes, pois não paravam em lugar algum. Assim como Alberto, eles viajavam muito, divertiam-se e bebiam bastante por vários lugares e com diferentes pessoas. Nunca poderiam ser sapatos entediados com a vida, graças a seu dono. Olhou para os pés de Martín. As botas pareciam um pouco mais alegres. É certo que estavam, como tudo ao redor, um pouco velhas. Ela é que estava ficando velha com essas comparações absurdas que vinha fazendo desde que entrara ali. Como se os móveis quisessem dividir o muito que já viram com quem ali estivesse. Não falavam, é claro. Percebeu Martín olhando-a desajeitado. Começou a desculpar-se pela bagunça e poeira, não tivera tempo para dar um jeito nisso. A poeira com certeza estava ali há mais do que um mês. Talvez os sapatos também. Desprendidos da vida e não se importando com poeiras e com os lugares corretos que destinamos a eles sem perguntar-lhes nada. Tarde. Não, noite. Voltava ao Hotel. Por um momento que se arrastou pelo quarto e pelas paredes e cortinas, sentiu-se vazia. Seu trabalho, tão importante, certamente não significaria nada para Martín. O que poderia haver de semelhante com seu mundo existencial o elaborar roupas para senhoras finas? Só preocupadas com a aparência? Era um trabalho de consumo. Então ela própria era isso. Adormeceu.<br />Acordou pensando em Martín. Afinal, o que haviam compartilhado nesses três dias em que se viram? Sua mãe não acreditaria que fizera uma viagem e não conhecera Santander ainda. Aliás não tinha mais vontade de ver coisa alguma. Só Martín. Tinha algo de vida em seu jeito de olhar. De ser. Sentiu-se consumir ao lembrar do seus olhos sobre ela. Queria fazer parte de outro mundo. Sem roupas fúteis, cabelos engomados e perfumes finos. Queria Martín, só isso. E Alberto? Era como as roupas que ela produzia : efêmeras e onde nunca alguém leria algo através delas. Não inspiravam vida. Só transições de bons instantes, iam embora e nada deixavam. Como se não existissem.<br />Não se viram nos dias em que ela ainda permaneceu em Santander. Nem ao menos uma despedida. Martín sumira. Helena ficara confinada ao Hotel perto do telefone. Fizera uma viagem para ficar escrava de uma ligação entre o colorido do papel de parede e o preto e branco de sentimentos e imagens recentes.<br />Maio. A Itália já não era mais como antes. Ao abrir a porta do apartamento de Alberto, teve um pressentimento de que havia alguém invadindo seu espaço.<br />— Alberto — gritou Helena, parada ainda na porta com as malas ao seu lado, viu ele sair do quarto.<br />— Helena, resolveu vir antes? — perguntou desconcertado e passando a mão pelo cabelo.<br />— Não, Alberto. Você deve ter esquecido a data do meu retorno — começou a dirigir-se ao quarto, mas ele a segurou pelo braço.<br />— Olha, Helena. Eu posso explicar o que está acontecendo.<br />— Eu posso imaginar, Alberto — parou na porta. Uma outra pessoa ocupava seu lugar, seu travesseiro, o ar ao redor que ocupava com seus pensamentos, sim, ocupava sua vida sem pedir licença. E Alberto permitia. Era realmente tudo o que precisava ver depois de voltar de Santander. Começou a virar as costas. Ele tentava explicar algo que nunca em momento algum da humanidade precisou ser explicado. Por que as pessoas insistiam em falar durante essas situações? Não havia nada a ser dito. Ou aceitava o que vira ou não. Era bem simples. Resolveu que não aceitaria. Pegou de volta as malas e saiu. Seu próprio apartamento seria o melhor lugar do mundo. Silencioso. Tentou definir o que poderia ser isso. No táxi ouviu um noticiário ao longe que falava ‘em 1940 os alemães ocuparam parte da França’, em 1997, Annabelle, conhecida como Anne, invadiu parte do território pertencente a Helena di Tchenzzo. Achou que era difícil ocupar algo que não nos pertencia realmente. Algo como lençóis, na verdade nunca foram só seus e de Alberto. Travesseiros, não reconheciam mais os rostos que nele deitavam porque eram muitos. Talvez o travesseiro que ocupava na cama de Alberto também a confundisse com outros rostos. Por que eles lhe dariam um tratamento diferente? A cada noite um novo rosto? Precisava descansar de tudo isso. Precisava dormir. Dormir muito e saber que não acordaria a mesma pessoa. Talvez outra que a ajudasse a compreender as pessoas. O que queriam para si mesmas a ponto de magoar tantas outras. Conquistar espaços. Valeria a pena? Tinha certeza de que Martín acharia que não. Sentiu saudades daquele olhar triste e das roupas pretas que usava. Consumiu sua vida com Alberto, fora muito estúpida ficando com ele e com suas gravatas de seda colorida.</span></div><div align="justify"><span style="font-family:trebuchet ms;font-size:85%;"><br />Anna K. & Antigos Contos 1997 </span></div><div align="justify"><span style="font-family:Trebuchet MS;font-size:85%;">Conto publicado em Contos de Oficina 19 & na Antologia Nacional de Contos Josué Guimarães</span></div>sandra adria_na fasolohttp://www.blogger.com/profile/10290250930694294016noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-16588935.post-1126391315617638202005-09-24T19:25:00.000-03:002005-09-11T23:30:01.456-03:00Teia<div align="justify"><br /><span style="font-family:verdana;font-size:85%;">Uma teia pode ser construída através do entrelaçamento de fios. Os fios podem ser tecidos de amor, tristeza, ciúme, ou até mesmo, da morte. Enfim, obrigatório apenas a presença de duas pessoas e a teia, então, se faz e se desfaz. O pacto com ela pode ser perfeito, depende. Com seus frágeis fios, quase invisíveis, a tornar-me uma mulher com medo e alerta. Olho sempre se não estão a desprender-se ou sujos da poeira que vai se acumulando com o tempo, eu finjo não notar. Não podem desprender-se, um que seja, a teia se desmancharia. Não bastasse a fragilidade, precisam estar presos a algo para que se sustentem, do contrário tudo se vai. Não bastasse a sustentação é preciso a sorte de que ninguém irá arrancá-los de sua certeza de permanência. Não bastasse a certeza, é preciso que durem muito tempo e que o cuidado, também a ser vigiado, não seja menor do que a sua fragilidade. Sim, essa rede elástica e emaranhada é o meu mundo construído de forma ilusória e ingênua. As aranhas, pela sua natureza, "sentem" que a teia jamais se desmanchará. E eu, com ingenuidade trocada por esperança, choro pelo invisível, pelo frágil, pelo que se quebra sem que se ouçam os ruídos, pelo que se ama sem que se possa ver, pelo que se constrói lentamente sem que termine num sopro. Luto pela minha teia e não sei quais os fios que continuam presos uns aos outros. Luto por ela enquanto a abandono sem preocupar-me se continuará protegida e se os fios são ou não traços de meu imaginário. Terá ela forças para impedir a ruína, quando eu cismar em virar-lhe as costas? Deixar que se vigie a si própria caso queira sobreviver? Talvez ela não tenha forças de lutar quando abandonada, sim, a força da fragilidade é grande e se quebra facilmente. Há quem consiga construir sua particular teia sem viver necessariamente do que existe em seus fios. Mas todas elas continuam seu curso próprio e voltar atrás é correr o risco de não tê-la nunca mais. Preferível os fios já tecidos do que a destruição, ou tranformar-se em Penélope, a tecer e destecer um trabalho infinito onde o que resta é esperança. Não, decididamente não, que o bordado de Penélope permanecesse longe dela, não precisava da lenda grega, ‘Penélope, rainha de Itaka e mulher de Ulisses, a ser-lhe fiel durante a longa ausência, dizendo aos pretendentes que não se casaria enquanto não terminasse a feitura de uma grande tela, que tecia durante o dia e desmanchava à noite’. Isto era uma sedutora fantasia grega, mas não iria cortar a sua própria teia da vida que demorava tanto tempo para tecer. Não seria louca qual Penélope. Jamais desmancharia um fio que fosse. Chegaram em casa, a teia aumentara quase que imperceptivelmente. Mas Beatrice sabia que aumentara, sorriu em silêncio, olhou para seu amor e percebeu que a teia estava grudada na superfície e no interior de ambos. Tarde demais, perigosa, estabeleceu-se. Há que alimentar os seres que vivem nela do necessário para viver, pensou ela. Um chá de camomila, o creme dental no armário do banheiro, os pijamas sem estampa. A teia cumpriu outro dia, possui a noite pela frente. ‘Que bom tê-la entre nós’, pensou ainda Beatrice, antes de ir para o sono profundo onde a trama dos finíssimos fios seguirá cumprindo seu destino sem que ela ou ele consigam ver ao longe.</span></div><div align="justify"><span style="font-family:verdana;font-size:85%;"><br />Anna K & A Teia "Vista" no Guion. Porto Alegre 1997</span></div>sandra adria_na fasolohttp://www.blogger.com/profile/10290250930694294016noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-16588935.post-1127536619886047562005-09-24T01:30:00.000-03:002005-09-24T01:36:59.893-03:00Jamais seria tão somente<div align="justify"><br /><span style="font-family:trebuchet ms;color:#999999;">Jamais seria uma poeta <br />Jamais seria uma romancista<br /></span></div><div align="justify"><span style="font-family:trebuchet ms;color:#999999;">Não escrevo tanto quanto um romancista "sobre uma mesma coisa ao mesmo tempo e sob o mesmo aspecto"<br />É a minha fragilidade de síntese-analítica<br />Não escrevo como um poeta em sua síntese-metafórica breve e suficiente<br />Jamais pertenceria somente ao mundo terno da linguagem suficiente.</span></div><div align="justify"><span style="font-family:trebuchet ms;color:#999999;">Preferiria tocar flauta.<br /><br />A poesia encanta porque envolve o leitor numa sensação etérea, a poesia passa longe da realidade, não importa o que diga, não importam as palavras usadas, a poesia em seus estranhos versos nos tira da realidade. Não tem nada de pragmático num poema, nada de prático, nada de mundo real. Por isso encanta. É simplista o que digo? Sim, mas também não importa. Passa, como a poesia, longe da realidade. Difícil explicar. Quem cria outros mundos? Soa. Encanta. E passa ao longe.<br /><br />Mas então ele me olhará com olhos de poeta.</span></div><div align="justify"><span style="font-family:trebuchet ms;color:#999999;">Olhos da noite irão ferir-me longamente?<br /></span><span style="color:#999999;">13 set 98</span></div><div align="justify"> </div><div align="justify"><span style="color:#999999;">Anna K. & Pensamentos Antigos</span> </div>sandra adria_na fasolohttp://www.blogger.com/profile/10290250930694294016noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-16588935.post-1126393843545386652005-09-23T08:07:00.000-03:002005-09-15T01:20:54.943-03:00Dez horas<div align="justify"><span style="font-family:verdana;font-size:85%;">Dez horas. Não. Nove e cinqüenta. Chegou dez minutos mais cedo. Ansioso? Demorei a sair do apartamento e descer os nove andares, apesar do elevador. Noite quente. Meus pés e ombros estavam suando num sapato de verniz com salto e um zíper enorme. Não lembro o que ele usava nos pés. Às vezes faz cara de coelhinho assustado, arregala os olhos grandes e olha fixo. Talvez não seja bem isso. O bar era muito original com alta decoração mexicana. Fomos para o espaço aberto ao céu. Algumas garrafas enormes, mais ou menos com meio metro e penduradas nas árvores balançavam levemente. Garrafas de tequila. Pedi uma margarita tradicional e ele um preparado chamado ‘el diabo’. Ao mesmo tempo em que fez o pedido, fez também o sinal da cruz. Para mim? Para o drinque maluco que pedira? Para a noite? Não consegui perceber, pois seu olhar é igual para tudo, a não ser quando arregala os olhos. Fala brincando ou fala triste e o olhar é o mesmo. Não dá para perceber então, o que na realidade sente. Pena. Queria saber o que o sinal da cruz representava. Sinais desse tipo são todos muito importantes. Não importa a cruz. Importa que é sinal. Que é para seres humanos. Para mais ninguém. O sal da margarita me embriagou. Ria alto sobre a adaptação dele ao frio do Sul. Diz que vai me chamar de macarrão porque meu apelido lembra marca de massas italianas. Está certo, sou descendente de italianos por ambos os lados. Mas não tenho jeito para espaguete. Decididamente não sou macarrão. Fim de noite. Fiz um discurso sobre meus desvios de personalidade começando pela letra a até z. Em algumas letras tive que optar, em outras nada me ocorria. Mais margarita. Um café expresso para mim. Agora falávamos de excursões a cemitérios. Tirei fotos de lápides tumulescas no final de semana num antigo cemitério do interior. Convidou-me para passear pelo da Capital. Existe um guia que percorre os lugares mais interessantes. Fez algo assim em Buenos Aires. Tipo Evita Péron. De cemitérios a flores. Passa um senhor bastante idoso com um vaso repleto de pequenas rosas amarelas. Não, por favor, flores não. Agora não. Mais tarde também não. Só quando chegar o momento. Ri do café à meia-noite - diz que é incomum. Talvez ache que sou louca. Mas por que seria? E por que ele pensaria isso? E ele? Seria ou não? Cinco horas da madrugada. Tenho que ir. Deixei as luzes em casa acesas e a porta da sacada aberta.<br />Cinco horas da madrugada e um minuto. Tenho que ficar. Deixei as luzes apagadas e a porta que dá para o quarto, aberta. Então, fico mais um pouco sem saber ao certo porquê. </span></div><div align="justify"><span style="font-family:verdana;font-size:85%;"><br />Anna K. & Aquele Estranho Empirismo que nos cerca às vezes. Parte: Menos Um </span></div>sandra adria_na fasolohttp://www.blogger.com/profile/10290250930694294016noreply@blogger.com0