22 de setembro de 2005

Se ter lucidez for o mesmo que andar

Havia sido um dia quente. O sol estava por sumir. Como de costume encontrava-me em minha caminhada. A obscuridade refletida nas calçadas, nos poucos passos que ainda se escutava pelas ruas, um ou outro grito ao longe, provocavam em mim a saída rotineira. Caminhar era lutar contra a insônia. Olhei para o céu. Estrelado. Não gosto de levantar-me com as estrelas e sim estar por entre elas. Passo agora em frente a um bar, desses que abrem e fecham com estrelas. Ouço uma música muito alta. Distancio-me um pouco. O som ainda me persegue por algumas quadras, se ter lucidez for o mesmo que andar e não notares que andas, o tempo inteiro, é sinal que valeu, conheço a voz, Vítor Ramil. Quantas quadras terei que andar para encontrar a lucidez? E notarei que ando? Ao longe vejo um homem muito magro, roupas rasgadas e sujas. Tem insônia também? Junta algo do lixo. Não. Não tem insônia. Tem fome. Sinto, ao ver a cena, sob o céu escuro por entre a vida da noite, uma injustiça. Circunstancial? Tudo muito parecido há muito tempo. No universo os planetas se distinguem pela cintilação que cada um possui. Aqui, entre calçadas a separar ruas de caminhos, pergunto-me em que este homem se diferencia. Aparentemente nada cintila em sua aparência. No universo, mesmo os planetas menores têm seu espaço e seu brilho. Termina de juntar o pão e leva-o à boca seguindo seu caminho. Vai de forma trôpega e expressão opaca. O homem não era um planeta, não cintilava. Era apenas um ser humano.
_____

Desejava ser como a noite. Sempre surge, faça frio ou vento forte. Não se importa com épocas de guerras ou de paz, existe naturalmente. Primeira moradora da terra, observa. A noite nunca conta nada. Tudo vê, acontecimentos em toda a extensão de vida e tempo. Mas tudo que conhece fica para si. A injustiça do mundo não atrapalha seu curso normal. Estas eram as horas mortas da noite, a indiferença. Continuaria a andar em altas horas, talvez descobrisse que o caminho da lucidez não é o mesmo das emoções.
O mundo que dorme é o que cintila mais alto? Como podem sonhar?
Exercício literário
1996