27 de agosto de 2005

Retrato de Família

A senhora de cinqüenta anos está deitada na cama de madeira torneada. Lençóis brancos e um cobertor de cores escuras a cobrem, deixando somente braços, colo e rosto descobertos. Três rapazes e duas moças estão parados ao seu redor. É um retrato da mãe doente com seus cinco filhos a contemplá-la. Não se sabe se é a foto antiga em preto e branco e amarelada ou se eles realmente vestem estas cores. Não se sabe se o líquido revelador excedeu o tempo sobre o papel ou se a mãe estava mesmo muito pálida. A filha menor tem uma roupa diferente dos demais. Ainda usa um vestido de menina com uma blusa branca por baixo, laços soltos, meia igualmente branca e sapatilhas pretas. O vestido pelos joelhos talvez fosse bege, mas era ainda de menina. E ela talvez tivesse seus onze anos. Cabelos curtos deixando visível a expressão do desconforto — com o fotógrafo ou com a doença da mãe? — diferente da roupa, não usa mais o olhar de menina. Os rapazes com seus ternos escuros permanecem com uma expressão serena, porém misturam a ela o vir-a-ser de ilusões a serem desfeitas, um debruçar-se sobre um mundo que se mostra falsamente livre. A outra filha, com uma veste mais sóbria e um olhar já de dissimulação, talvez a mais velha de todos eles, mostra-se inquieta e louva em voz baixa palavras que nunca penetraram sua alma. Os olhos de Helena — da mãe — estão fechados. Ela dormiu durante todo o dia. Também a noite. E as outras dezoito horas seguintes à noite. Dorme muito. Ela adoece, ela dorme. O sono às vezes traz pesadelos para Helena, mas a alma não tem medo de viver o sono e os sonhos e os pesadelos e jamais esquece o que vive no seu mundo interior. Não tem medo. Sempre vai. A pequena Angêla logo se deu conta disso. Via sua mãe agonizar dormindo e deduzira, ‘ela dorme em demasia’ e então acaba por conceder um tempo muito grande para que os pesadelos a encontrem, ela deixa que eles a suguem de uma outra forma, enquanto está indefesa. Não dormirá como sua mãe. Também não terá muitos filhos. Dois, quem sabe. Ou nenhum. Dormirá somente quando não puder manter os olhos abertos. E acordará quando sua alma voltar para cama antes de ter encontrado coisas tristes. Sim, dormirá pouco, pouquíssimo. Preferia não ter de dormir.’ O olhar de Ângela é o desconforto da mãe deitada. Ela não vai levantar mais? Se ela não levantar, Ângela não dormirá nunca mais. O fotógrafo finalmente tira a fotografia. A mão abre os olhos, vira para o lado e continua a dormir. Ângela sai do quarto. Ela vai ler, vai andar, talvez chorar. Mas não vai dormir como a senhora idosa, cabelos grisalhos com a magreza da velhice e as roupas largas de cores escuras, que a tornam propriamente uma imagem do passado, maior do que a imagem da fotografia.
Anna K. & a Paixão Dominante por Imagens Simulacradas
1997

Dose pessoana?

Antes de qualquer coisa, um novo dia irá se seguir e a imitar outros, já seguidos e futuros, com o igual cotidiano a repetir-se, disfarçado para evitar a morte certa. Como tudo isto é incerto, ergo-me, arrastando-me vou ao banheiro num ritual e deixar que os pingos da água escorram lavando o arrependimento que pode ainda assolar o meu ser. Não creio mais. Ainda há tempo. São seis horas da manhã. Às oito devo estar pronta e o arrependimento escoado e longe, misturando-se à continuidade da vida. Finalmente tomei a decisão. O que pode haver de bom nisso? Tantos já decidiram tantas e outras coisas em tantos lugares e distantes tempos que a minha decisão não se torna nem boa e nem má para o mundo. Torna-se algo para mim, não sei bem o quê. Decisão que é minha e então importa, não por ela, mas porque sendo minha, importa. Qual a diferença entre ser minha e não ser minha? O fato é que me pertence, a mais ninguém e assim a diferença é esta e não outra. Se fosse outra não seria nem minha, nem diferente. Apenas outra e indiferente a mim e ao mundo. Abandono a literatura, renunciando o mal a cercar-me. Retorno a literatura e ao bem que me desperta. O abandono e o retorno me perseguem como a sina de quem não sabe o que quer ou querendo tudo não quer nada. Escreveria se não me sentisse tão ensimesmada. Escreveria amanhã se a decisão a tomar fosse para amanhã, mas não, tem que ser hoje. De qualquer forma tudo impede que eu escreva, pois o real a ser vivido é o passo vacilante do tempo e do irreal não vivido. A decisão do meu delírio lúcido reduz a questão a dois. Parece menos complicado. Jogo a decisão para dentro do líquido alaranjado e os três se reduzem a um. Agora parto para nenhum lugar como se na verdade não partisse. E porque não me basta ser algum, não podendo ser outros, prefiro ser nenhum, percebo que lá dentro é escuro, nebuloso, sombrio. Sinto a falta do ar e a escuridão a por um fim em tudo, desejo de nada desejar. E nesse torpor paralisante sinto um desejo intenso de transformar-me numa folha que voa sem rumo, apoio o que me resta apenas nisso, mas que me seja dado pensar para sempre, e nesse hino mal feito de última hora, abdico do mundo e de sua louca correria, disfarçada em coisas amorfas também sem lucidez. Entrego-me ao vento e a natureza de ser apenas uma folha. Com a leveza deste pensamento deixo-me incorporar ao outro mundo de passos não tão vacilantes.
Anna K
Exercício literário
1997