5 de setembro de 2005

Há quem prefira o nada à dor, sempre há

Comprei um manto verde, desses que ninguém mais dá importância porque tornaram-se comuns, e comecei a treinar um olhar triste, pois era desagradável que nada acontecesse na minha vida. Logo ao amanhecer jogava-o de forma a tapar parte do meu rosto, às vezes suava muito e o tecido se tornava pegajoso, outras vezes eu sentia frio como se o manto ocultasse uma geleira e nesses instantes eu percebia o quanto ele se apegara a minha pele, talvez à minha alma, reproduzindo angústias que eu tentava manter por debaixo de um tecido leve e suave e, no entanto, se transformava em uma frieza sólida e contida ou num calor denso, sufocante. Presa à janela do quarto, por toda a vida, era difícil que algo acontecesse. Eu tinha o nada e queria a dor, só pelo prazer de ter algo que ultrapassasse os limites do quarto. Uma dor que andasse pelo mundo. Que substituísse o meu andar. Sim, agora eu tinha um manto, meu olhar começara a se tornar entristecido. Se eu conseguisse sentir essa dor que se espalha pelo universo, como todos aqueles que passam embaixo de minha janela, seria como se eu também andasse. Como se fizesse parte do mundo lá fora sem que precisasse diluir-me dentro dele. O manto como amuleto. O olhar como guia.
O homem que eu via todos os dias, do mundo que eu estava designada a viver, também tinha um manto. Tapava o rosto e não tapava os olhos. Enquanto ele caminhava lentamente observei que se tornara gasto pelo tempo, de cor esverdeada, já não tão verde. Os olhos, por certo, tinham a mesma cor desde que passaram a existir, desgastados. Num deles, havia uma tristeza maior, como se a tivesse absorvido antes do outro olhar e prenunciara ao homem que nunca mais deixaria aqueles olhos. A tristeza ficara para sempre e lhe dera um tipo de olhar que parecia existir sozinho sem que o seu corpo tivesse alguma importância. Como se o olhar carregasse o corpo. O homem falava pouco, quase nada. Ou nada. Se é que falava. Andava muito. Sem parar. Da minha janela — e todos podem dizer que possuem alguma história para contar vista de sua janela — via o homem passar, ao anoitecer, ao amanhecer, à tarde. Que importância tinha isto ? O homem passava. E o fazia com o olhar triste e o manto a cobrir-lhe parte do rosto. Nunca olhara para minha janela. Ou para mim, que também possuía um manto. Talvez para ninguém. Andava muito. O manto foi ficando verde-claro e eu continuava na janela. Depois, vi que já se tornara bege. Os olhos não tinham mais o brilho inicial, apesar da cor ser a mesma. Ele parou em frente à minha janela, olhou para cima e para mim. Vi nos seus olhos um apelo sem resposta. O manto sem cor, o olhar sem brilho e o ar de quem se despede. Um pouco úmido. Embaçado. Definitivo. Voltou-se para a rua e continuou a andar. Fora tudo o que fizera em sua vida? Procurara algo, é certo, os olhos não ajudaram, foram ficando turvos, entristecidos e perderam-se na busca incerta.
‘És um insensato à procura de algo que não se encontra neste mundo”. Sim, a observação de Goethe o definia por completo. Procurara algo. Sabia disso, o inexistente fosse substituído pelo nada. O nada não era inexistente, existia. Há quem prefira o nada à dor. Há quem diga que ter o nada é ter um manto aliado à tristeza de olhar. Quem sabe fora tudo o que ele tivera — seu manto e a insensatez do que esperava encontrar ou fosse nada. E se nada fosse, na verdade, fora com tudo o que pudera partir. Partira para sempre. Como se os passos dados apressassem o fim do meu manto novo e eu pudesse reencontrar o homem do olhar triste e possuidor do nada, continuei a usar o meu manto. Este não estava gasto. Como poderia estar se preso ao quarto não poderia buscar nem mesmo aquilo que se pode encontrar neste mundo? Nunca conseguiria “sujar a minha imaginação com a imundície da vida”
[I1] 1 , então comecei a imaginar que era eu, a partir de então , a passar embaixo de minha própria janela e a tapar a ausência que o homem deixara dentro de mim, pois não aprendera a viver no mundo lá fora. Dilui minhas emoções por baixo de meu manto e contentei-me com isto. O que poderia dizer sobre o homem que partira? Não foi importante na vida de ninguém ? Na minha, sim. Talvez a vida de andarilho tivesse sujado demais a sua imaginação e o seu coração, tomado de dor, diluído pelo mundo e preferindo o nada a tudo que conhecera.

Anna K.

Exercício literário



1 TCHECOV, Cartas para uma poética.

Página: 2 [I1]

Tempo guardado

Tempo guardado. O tempo guarda coisas que nos joga no rosto no futuro. Tem a ver com o que fizemos de nós mesmos. Como dizia Freud, ‘não se pode amar e ser agradável ao mesmo tempo’. Há muito de verdade nessa afirmação. Ser agradável é vaidade de ser amado. Não é amar. E se não se é agradável com quem convivemos é impossível a permanência. Então o amor é esquecido. Fica o bom convívio, vai-se embora o amor. Fica o inferno, o amor permanece. Pessoas sem metafísica ocupam muito espaço.
Perguntaste certa vez o que era falso em mim, a alegria ou a tristeza. Não era a mim que perguntavas. Foste importante por isso.
O tempo guarda coisas que nos joga no rosto no futuro. Tem a ver com o que fizemos de nós mesmos.
Um coração que nada vê
Um sentimento, embutido
Uma emoção, acidente a ser esquecido.
Quem haverá de querer saber o que se passou com o cotidiano de alguns?

Anna K.
Exercício literário
1996